No Distrito Federal, cerca de 47 mil domicílios, ou 128 mil pessoas, estão em situação de insegurança alimentar grave, forma mais severa de baixo acesso domiciliar aos alimentos, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Publicados em abril deste ano, os números se referem ao último trimestre de 2023.
No esforço para reduzir essa carência, a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) informou que, por meio do 3° Plano Distrital de Segurança Alimentar e Nutricional (PDSAN), houve a ampliação das famílias que recebem o Cartão Prato Cheio e de refeições servidas nos restaurantes comunitários, mais de 10 milhões, em 2023. De acordo com o IBGE, dos 1,1 milhão de domicílios particulares permanentes no DF, 76,5,% estão em situação de segurança alimentar, índice acima da média nacional.
A disparidade entre a quantidade de pessoas em segurança alimentar e aquelas com baixo acesso a alimentos reflete mais uma das desigualdades de décadas presentes no DF, como ressaltou Flaviane Canavesi, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB). “São dados que mostram haver um bolsão de pobreza”, disse.
Além disso, a especialista destacou que essa exclusão nunca está sozinha. “Quando chegamos em um quadro da perda deste direito (de se alimentar), significa que as pessoas estão despossuídas de vários outros direitos, como moradia, renda e trabalho”, completou a professora, que estuda e desenvolve projetos nas áreas de agroecologia e agricultura familiar.
Segundo Crispim Moreira, doutor em geografia e consultor internacional em sistemas agroalimentares e soberania alimentar, a insegurança alimentar é um problema antigo no DF e no Brasil, com raízes no sistema de agroexportação brasileiro, que contribuiu para a concentração de terras e deixou em segundo plano o abastecimento interno. “Faltou elaborar políticas públicas direcionadas à agricultura familiar que, além de produzir alimentos mais saudáveis, gera renda, incentivando os pequenos produtores”, explicou.
Ainda na construção de Brasília, a ocupação territorial do DF se desenvolveu de forma desigual, ressaltou o especialista, concentrando pessoas com maiores rendas no centro e o restante da população nas regiões administrativas mais distantes e no Entorno. Tal fator, diferentemente de outros estados, potencializou as disparidades sociais. “Fora de um sistema de agricultura familiar, é caro ter acesso a alimentos saudáveis, restando a essas comunidades consumir produtos ultraprocessados”, lamentou.
Prato incompleto
Batatas, água, uma lata de sardinha e um resto de carne moída. Na geladeira de Érica Dias, 34 anos, essa é a alimentação prevista para três dias. Arroz e feijão, quando há, complementam o prato. Desempregada e com quatro filhos, a moradora da Chácara Santa Luzia, na Estrutural, depende de doações e do Cartão Prato Cheio, programa do Governo do Distrito Federal (GDF), para garantir as refeições da família.
Na casa de Érica, falta água para beber, cozinhar, tomar banho e fazer a limpeza das roupas e do local. “Os vizinhos nos dão água potável para beber e fazer comida. Para banhar, pegamos (água) em um poço artesiano, também na casa de uma vizinha”, relatou. Frutas, verduras e legumes são raridade. “Só consigo comprar carne quando recebo o auxílio do Prato Cheio. Fora desse período, a gente costuma comer apenas arroz, feijão e cuscuz”, completou.
O Prato Cheio é um benefício pago em um ciclo de nove parcelas de R$ 250 para auxiliar pessoas em situação temporária de insegurança alimentar e nutricional. Para participar do programa, é necessário agendar o atendimento socioassistencial (Cras, Creas, Centro Pop e outros) para que o profissional avalie as necessidades da família.
Moradora do Sol Nascente, Fátima (nome fictício), 40, alimenta-se três vezes por dia, mas há pouca variação em seus pratos. “É o básico. Arroz, feijão e ovo. No começo do mês, ainda dá pra comprar uma carne, mas fruta e alguns ‘agrados’, tipo um biscoito, é muito difícil. Com o tempo me acostumei. Sofro mais por não poder dar as condições que queria aos meus filhos. Eles me pedem e não tenho como dar”, desabafou.
Com quatro filhos, um deles já falecido, a dona de casa contou que a família vive da renda do filho mais velho, que é ajudante de pedreiro na região, e dos auxílios do governo. “Eu fui doméstica por muito tempo. Comecei em ‘casa de família’ com 16 anos. Mas, depois que desenvolvi uma hérnia, não consigo fazer tanto esforço, sinto muita dor”, revelou. Fátima conta que, várias vezes, o que lhe tira o desconforto da fome são as doações de vizinhos em melhores condições financeiras. “O pessoal se ajuda muito. Isso também nos dá forças”, comentou.
Desnutrição
Carolina Vogado, nutricionista e mestre em nutrição humana, lembrou que uma alimentação insuficiente e sem os nutrientes essenciais pode levar o indivíduo à desnutrição, causando não apenas alterações na composição corporal, mas também comprometendo o funcionamento normal do organismo. “Em crianças, há risco de haver interrupção do crescimento. Pode levar ainda a alterações psíquicas e psicológicas, queda de cabelo, anemia, fraqueza, aumento do risco de quedas e fratura e importante debilidade do sistema imunológico, aumentando o risco de outros agravos em saúde para o indivíduo”, explicou a também professora do Centro Universitário Uniceplac.
Na quadra 92 da Chácara Santa Luzia, mora Joelma Eleutério, 48, que, assim como Érica, vive em situação de insegurança alimentar com seu filho, sobrinho, mãe e marido. “Às vezes, só almoçamos e jantamos. Lanchamos apenas quando tem alguma coisa. Mas meu filho consegue se alimentar melhor na escola. De lá, volta com a barriga cheia”, comentou. Ela recebe mensalmente cestas básicas de ONGs, além de benefícios do Bolsa Família e do Prato Cheio.
Joelma, que era doméstica, precisou deixar a profissão pelo agravamento da diabetes e da hipertensão. Na casa, a única fonte de renda vem do marido, que trabalha em um mercado e, quando possível, leva pedaços de osso e de gordura para a família. “O que mais comemos é fubá e macarrão, que costumam render bem. Arroz, feijão e açúcar está mais difícil. Tudo muito caro”, destacou.
Combate intersetorial
Questionada sobre o contexto de insegurança alimentar no DF, a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) reforçou a necessidade de ações conjuntas. “É fundamental ter a percepção de que a fome é tema combatido por este governo de forma intersetorial, com ações que envolvem várias secretarias além da Sedes, com políticas públicas como reaquecimento da economia, capacitação da população, geração de empregos, preço da cesta básica, merenda escolar de qualidade, entre outros. Trata-se, portanto, de uma questão complexa”, disse a pasta, em nota.
“Pela própria pesquisa do IBGE, é possível avaliar o resultado das políticas públicas do GDF. Hoje, 76,5% das famílias estão em situação de segurança alimentar, segundo melhor índice do Centro-Oeste. O termo insegurança alimentar é utilizado quando a pessoa não tem acesso suficiente a alimentos para sua necessidade básica. Ela pode ser leve, moderada ou grave. No caso dessa pesquisa, o maior percentual de insegurança alimentar é o leve, com 14,7%, quando a pessoa tem apenas uma incerteza de acesso a alimentos no futuro”, concluiu a Sedes, em nota, ao analisar os números da PNAD Contínua.
Para a professora Flaviane Canavesi, o incentivo à agricultura familiar é uma das saídas possíveis para fortalecer o abastecimento interno do DF e, consequentemente, reduzir a insegurança alimentar. “São cultivos diversificados e que atendem aos padrões de alimentação da população brasileira. Além disso, há a possibilidade de desenvolver mercados mais localizados e próximos do consumidor, fornecendo produtos frescos”, sugeriu.
Crispim Moreira, consultor internacional em sistemas agroalimentares, ressaltou que o DF tem grande potencial de reverter esse cenário de insegurança. Para isso, é primordial fazer uma busca ativa por comunidades que vivem nessas situações, dando andamentos às políticas de proteção social. “Em seguida, é importante fazer essa transição dos sistemas de produção alimentar (pois é esse segmento que fornece a maioria dos produtos para o consumidor da capital do país), para permitir a geração de renda aos pequenos produtores e melhorar as condições das famílias em vulnerabilidade”, concluiu.
O que é insegurança alimentar?
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a insegurança alimentar ocorre quando as pessoas não têm acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficiente para sua sobrevivência. As incertezas de quando, como e quanto irá comer em sua próxima refeição colocam em risco sua nutrição, saúde e bem-estar.
Já a fome é definida como um desconforto físico ou dor causada pelo consumo insuficiente de energia alimentar. Entretanto, quem passa fome por conta de causas sociais e estruturais, também se encontra em algum nível de insegurança alimentar.
A insegurança alimentar divide-se em:
» Leve: há comprometimento da qualidade da alimentação em detrimento da manutenção da quantidade percebida como adequada;
» Moderada: acontece quando a pessoa tem sua capacidade de obter alimentos prejudicada em vista de fatores como renda ou acesso a recursos;
» Grave: quebra do padrão usual da alimentação com comprometimento da qualidade e redução da quantidade de alimentos de todos os membros da família, inclusive das crianças residentes nesse domicílio, podendo incluir a experiência de fome.
Por Letícia Mouhamad do Correio Braziliense
Foto: Ed Alves/CB/DA.Press/ Reprodução Correio Braziliense