Por Fernanda Diniz, sob inspiração da música “Dona Cila”
“Eu estava determinada que aquele ia ser o ano, que ia ser bom pra mim, que eu não ia mais ligar pro bullying. Vou estudar e focar. Vou fazer isso que minha mãe me disse, porque é de fato a saída para as coisas”. A emoção está nas palavras da estudante de serviço social Alinne Alencar Conde, de 21 anos, sobre aquele início de 2017 quando perdeu sua mãe, aos 13 anos de idade.
Após sete anos do acontecido, a jovem avalia que as memórias daquela época são muito nebulosas. Mas sobre os dias da perda, ela lembra de tudo. Os pais eram divorciados e ela passava as férias com o pai em Brasília (DF). Ela estava longe da cidade onde morava, Catalão (GO) e foi quando a mãe, Maria Aparecida Alencar da Silva, de 34 anos começou a passar muito mal.
Quando Alinne voltou para o município onde vivia, a mãe já tinha ido à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) pelo menos duas vezes. Na última, decidiu ir para o hospital. Foi a última interação que Alinne teve com a mãe. Não houve um último abraço ou despedida porque pouco tempo depois ela foi internada na UTI. Maria Aparecida teve um acidente vascular cerebral (AVC), em decorrência supostamente do uso de anticoncepcional e três paradas cardíacas. Na última, ela não resistiu.
A estudante reflete o quanto a circunstância de perder a mãe tão jovem e de maneira tão repentina, impossibilitou que ela e sua irmã mais nova, que tinha dois anos de idade, na época do acontecido, de terem uma vida diferente. “Minha mãe era minha referência de paz. Você perde a mãe, você perde sua referência de casa, de lar, de família”, afirmou a jovem.
“Reenlutando”
Especialista em luto, a psicóloga Millena Câmara explica que esse processo de perda na infância requer uma atenção especial, em que uma das questões principais do luto nessa fase da vida é que a criança está em fase de desenvolvimento emocional e cognitivo. “ Ela vai se reenlutando ao longo do desenvolvimento dela”.
A psicóloga afirma a importância de ter uma rede de apoio, cuidadores para oferecer esse cuidado para a criança e para não desencadear danos e fortes consequências da ausência dessas figuras cuidadoras. Ela acrescenta a necessidade de, também, permitir que a criança expresse a sua dor sem julgamento. “A forma como o adulto vai cuidar e lidar com essa criança enlutada que vai influenciar no processo dela”, aponta.
Reflexão no Luto
Assim como Alinne, a consultora Sabrina Martins, de 32, também sente os reflexos da perda da mãe de maneira rápida e súbita. Em novembro de 2019, a mãe tinha 55 anos e foi diagnosticada com um estágio avançado de câncer no reto. “A gente acreditava que ela ia se tratar e ia ficar bem, aí em janeiro do ano seguinte ela veio a falecer, ela estava internada há 11 dias no hospital”, relata Sabrina.
A consultora conta que ela e o pai estiveram presentes em todo o processo desde a descoberta até o momento em que o médico disse o que iria acontecer e em questão de horas ela faleceu. “O luto transforma. Você sente muito as mudanças geradas pela perda”, afirma Sabrina, que ainda se considera em luto.
O luto costuma ser conhecido pelas suas fases e possibilita entender que há uma linearidade nesse caminho e que todas as pessoas com perdas nesse sentido irão passar pelos mesmos sofrimentos, emoções e sentimentos. Millena Câmara explica que, a partir de novos estudos, atualmente é utilizado o “Modelo do Processo Dual do Luto”. Esse é um processo oscilatório, de voltar ao momento de dor, mesmo quando já está num momento de reconstrução e readaptação.
Quinze dias após a perda, Sabrina criou a página no Instagram “Reflexão no Luto”, para falar sobre o seu processo de luto. A conta possui mais de 60 mil seguidores e tem a divulgação de textos e frases autorais escritas por Sabrina, além de reflexões e turmas de grupo de apoio.
A consultora recorda que tinha a necessidade de ter contato com outros enlutados para entender como isso era para eles e o que isso tinha de similar com o seu processo. Para ela falar sobre o seu luto, as postagens na página eram uma forma de expressar o que ela estava sentindo.
“A página contribuiu muito porque eu comecei a me relacionar com vários enlutados. A gente formou uma rede [de apoio] e, pouco tempo depois, surgiu a ideia de iniciar o grupo de apoio online”, explica. Hoje este grupo está na 12ª turma. O encontro acontece semanalmente onde os presentes falam sobre as suas dificuldades, além de trocar e compartilhar experiências.
“Então é um processo, costuma ser demorado, não é de uma semana para outra, de um mês pro outro”, afirma Sabrina. Segundo a psicóloga Millena Câmara, o luto é uma vivência subjetiva, individual e repleta de fatores que influenciam essa vivência. “ É preciso considerar alguns fatores para saber se esse luto está sendo saudável para o enlutado: vínculo, personalidade, forma de perda e crenças”.
Segundo a especialista, é necessário compreender pelo vínculo o significado daquilo que foi perdido pela pessoa: a forma como a perda aconteceu, uma vez que existem perdas mais traumáticas, perdas súbitas ou muito prolongadas que trazem muito sofrimento, podendo gerar reações traumáticas.
Sabrina Martins, assim como a psicóloga, aconselha que a busca de uma rede de apoio que escute o enlutado, e relata que às vezes as pessoas no processo de luto sofrem até um pouco de julgamento “nem todo mundo entender o que é um luto e o que um enlutado vive”.
Sobre o luto
O luto é um processo relacionado a todas as perdas que são significativas, existem vários tipos de perda. Segundo o psiquiatra britânico, Colin Parks, o luto é um processo de transição psicossocial, em que as pessoas têm um mundo interno presumido com crenças e valores, tudo o que é tido como garantido e quando uma perda acontece, esse mudo é abalado, quebrado e precisa ser reconstruído.
Hoje, tanto no CID-10, onde estão catalogadas todas as doenças conhecidas, quanto no DSM, manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, têm o diagnóstico de Transtorno de Luto Prolongado. O diagnóstico permite entender que essas pessoas podem de fato adoecer no processo do luto e que com isso elas também tenham recurso para serem afastadas do trabalho e receber tratamento. Porém foi determinado que o tempo para afirmar que é um transtorno prolongado de luto, é de seis meses a um ano.
É preciso ficar atento. “A gente também não pode patologizar todo e qualquer processo de luto e também não generalizar de que se uma pessoa depois de um ano e tiver ainda reações, isso não quer dizer que ela esteja num Transtorno de Luto Prolongado”, diz a psicóloga. Ela também aponta que ainda é necessário na área de saúde mental e formação dos profissionais na área da psicologia, psiquiatria e da própria medicina, um conhecimento sobre luto e essa subjetividade do processo. Outros fatores podem exigir mais do tempo de um enlutado para ele lidar e se adaptar com as mudanças recorrentes.
Millena Câmara é servidora municipal de Natal (RN) e idealizou um projeto no município, o Centro de Referência em Luto, pelo SUS na atenção básica, o qual ela é responsável e atende pessoas enlutadas com perdas que têm um risco maior para adoecimento psíquico. “Então, as pessoas chegam e elas serão atendidas com todo respeito e com todo o cuidado que elas merecem e precisam”, afirma ela.
Na área privada, Millena criou em 2016, o Núcleo Apego e Perdas, que junto com três sócias desenvolvem cursos e oferecem também o atendimento especializado para as pessoas que estão no processo de luto.
A psicóloga alerta que falar sobre esse assunto também é uma forma de chamar a atenção da sociedade, para o grande dano que “nós estamos causando às pessoas enlutadas, exigindo que elas fiquem bem muito rápido”. Millena afirma que o que está adoecendo muitas pessoas é uma sociedade que está silenciando o sofrimento, pelo sentimento de não suportar estar ao lado de quem está sofrendo.
“A gente precisa acolher essas histórias, precisamos ser respeitosos. Essas histórias vão ficar integradas na nossa vida, ninguém deixa de existir para alguém que ama porque morreu “, aconselha. Ela explica que o caminho é aprender a viver de forma saudável dentro de uma perda.
Por Jornal de Brasília
Foto: Reprodução Jornal de Brasília