Brasileiro finalista do ‘Nobel da Educação’ fala sobre trajetória: “Reconhecimento de uma vida”

Único brasileiro entre os finalistas do Nobel da Educação, professor de escola pública em município do Espírito Santo resgatou tradição oral da cidade e tem como meta formar alunos com senso crítico

O acaso não tem lugar na vida do professor Helder Guastti, 37 anos. Dedicação e comprometimento com uma educação emancipadora, para formar cidadãos conscientes e com potencial transformador para as suas comunidades, são o foco da atuação em sala de aula e no projeto social voluntário que abriga na própria casa, em um bairro da periferia do município de João Neiva, no Espírito Santo. Neste mês, ele viajou a Dubai para receber um dos maiores reconhecimentos da educação no mundo: o Global Teacher Prize, considerado o Nobel da educação. O docente ficou entre os 50 indicados, o único brasileiro nesta edição do prêmio, e concorreu entre 5 mil.

Helder dá aula para crianças do primeiro segmento do ensino fundamental — do 1º ao 5º ano —, em uma escola localizada no Bairro de Fátima, onde nasceu e mora até hoje com a mãe, também professora. “Apesar de vir de uma família de professores, esse não era meu desejo inicial, pelo contrário, eu falava que não queria ser professor”, conta ele, com a mesma veemência de quem negava durante a infância que seguiria a carreira de dona Rogéria Guastti.

“Minha mãe é uma professora muito querida aqui, e as pessoas a paravam na rua, chamando a tia Rogéria”, relata. Para viver a própria trajetória, Helder preferiu se distanciar da área de educação, mas a tentativa acabou por encontrar obstáculos e uma experiência ainda um tanto distante da sala de aula finalmente despertou a paixão. 

“Num desses atravessamentos da vida, entre 2017 e 2018, eu estava passando um período difícil, fiz um processo seletivo e fui contratado como professor de informática, mas acabei assumindo a secretaria escolar. Eu fazia mil funções e acabei me apaixonando”, detalha. 

Ainda menino, frequentou muito as escolas onde a mãe trabalhava, mas havia ali sempre uma vivência que não era própria e, portanto, mais pessoal. “Quando eu me vi de fato integrado à escola, foi despertando essa paixão. Era um encontro que eu precisava ter tido.”

Hoje, graduado em pedagogia, não se vê fazendo outra coisa, e tem um nobre e claro objetivo:  “Eu quero ser o melhor possível. Não no sentido de competição, mas no sentido de poder oportunizar uma educação potente, que vai promover uma formação integral das crianças”.

Encontro com a vocação

A escolha pela primeira etapa do ensino fundamental ocorreu por vocação. “É o segmento com que eu me identifico. Eu sinto quase como um senso de urgência, do que eu posso contribuir para essas crianças em termos de ampliação de repertório”, observa Helder. 

Essa fase do ensino fundamental é marcada pelo processo de alfabetização das crianças, momento crucial da formação e que, como mostram pesquisas e reforçam os especialistas em educação, formam a base para a construção de um conhecimento duradouro e senso crítico.

“O ponto central do meu trabalho é sempre a afetividade. Vivências, discussões, debates — entre as crianças; entre eu e as crianças; com os familiares”, reforça Helder, que acredita que o próprio caminho na educação influenciou essa escolha. “Quando olho para trás, na minha trajetória escolar, as marcas mais fortes são exatamente dessa etapa.”

Acolhimento

“A escola, a sala de aula, fazem parte do mundo. Elas não estão isoladas no universo. Quando a criança se encontra, pertence àquele espaço, onde o que ela fala importa, ela se apropria disso para a vida”, avalia o professor.

O projeto que rendeu, no ano passado, o prêmio Educador Nota 10 ao professor nasceu a partir dessa perspectiva. Concedido pelo Instituto Somos, o prêmio foi criado em 1998 e tem por objetivo valorizar o trabalho de professores e de gestores escolares da educação infantil ao ensino médio de escolas públicas e privadas brasileiras. Helder foi o vencedor da 26ª edição.

“Como diz o outro…” resgatou pontos da tradição oral da cidade que, apesar do clima de interior, perdeu ao longo do tempo e com a presença cada vez mais frequente da tecnologia, a raiz das histórias contadas de pais para filhos e de avós para os netos. O próprio nome escolhido faz referência a uma expressão popular da cidade de João Neiva.

A construção seguiu o passo a passo que o professor adota todos os anos. Helder aproveita o primeiro trimestre para entender em que nível a turma está em termos de repertório e de comportamento leitor. Depois dessa fase, a partir do segundo trimestre, ele passa a desenvolver o projeto, com foco em trabalhar a variedade de gêneros e outros aspectos da linguagem. “Como diz o outro…” nasceu após uma roda de leitura com a escritora Gabriela Romeu. “Ficamos tentando explicar a ela o que significava a expressão e ela sugeriu que resgatássemos a história de João Neiva”, afirma Helder.

Os estudantes participaram e opinaram em todo o processo. Pediram que a culminância do projeto fosse um livro ilustrado e com adivinhas e parlendas. “Pegando esse mote central do resgate do tradicional, tentei a todo momento trazer a  comunidade escolar e as famílias para a participação nos projetos. E um passo grande que a gente deu foi ir até as ruas, fazer pesquisa de campo mesmo”, conta.

Durante as pesquisas, as discussões sobre as novidades no mundo da tecnologia estavam em alta, com o avanço e a popularização das ferramentas de inteligência artificial generativa, em 2023. Alunos de uma escola no Rio de Janeiro haviam usado a ferramenta para fazer montagens pornográficas com o rosto de colegas de classe e a situação indignou os estudantes de Helder, que sugeriram fazer um uso da plataforma para o bem: as ilustrações do livro do projeto. 

“Acabou por fazer o resgate do tradicional, do oral, do popular de João Neiva, ao mesmo tempo em que trouxe a contemporaneidade do uso das ferramentas digitais”, celebra o professor, que também dá aulas em Aracruz, município vizinho.

Voluntariado

Ao lado da mãe, Helder abriu as portas da própria casa para um projeto voluntário, atividade que exercem no tempo livre. O Espaço Confabulando, que completa oito anos em abril, abriga uma biblioteca com acervo de aproximadamente 1,5 mil livros catalogados e mais algumas dezenas de gibis. 

A dupla inseparável também promove rodas de leitura por lá e por alguns pontos da cidade, levando leitura e cultura para a população. O lema é semear afetos e compartilhar risadas por meio da literatura. “A leitura é troca, é diálogo. É isso que nós tentamos oportunizar.”

Helder cresceu sob o estigma de morar num bairro de periferia que, apesar de ter nome de uma santa católica, Fátima, é conhecido como Morro da Caixa d’Água e carrega estereótipos comuns a regiões que abrigam população majoritariamente negra. “Tenho amigos e colegas que nunca vieram aqui; pais de alunos que nunca deixam os filhos virem aqui”, relata.

“Essa é uma visão que foi construída ao longo dos anos, de uma região com drogas e violência. Por ser um morro e ter a maior parte da população negra e carente, sabemos que nesses espaços os estigmas chegam e ficam. Mas, há tempos, não há índices expressivos de violência”, explica Helder.

Reconhecimento

Caçula de três irmãos, ele foi criado pela mãe. O pai dele e o dos dois irmãos mais velhos abandonaram Rogéria com os filhos. “Sempre passamos dificuldade, no sentido de ter apenas o básico do básico, mas com muito suor”, relata.

Hoje, o orgulho por ter recebido uma premiação nacional e reconhecimento mundial pelo trabalho se mistura à vontade de fazer mais e melhor por seus alunos e pela comunidade em que vive, mas também pela carreira que escolheu. Para sustentar os três filhos, Rogéria precisou trabalhar em três turnos, todos os dias, por um longo período. Mais de 30 anos se passaram e o cenário que Helder enfrenta é semelhante. “Eu tenho que trabalhar 50 horas (por semana)”, reforça o professor.

“Esse reconhecimento não é só meu. Tem toda uma rede por trás: professoras, crianças, minha equipe gestora da escola. É o reconhecimento do meu trabalho e do trabalho da educação pública”, destaca Helder ao comentar sobre o Global Teacher Prize. “Para mim, é o reconhecimento de uma vida. Apesar de lá atrás eu não ter tido o desejo de ser professor, eu sempre quis ser o melhor por mim e pelas crianças”, afirma.

Dona Rogéria, 66 anos, é só orgulho do filho e ainda nem conseguiu processar a alegria de vê-lo receber a premiação. O menino tímido e estudioso deu lugar a um profissional confiante e empenhado em promover transformações.

Hoje, os dois lecionam na mesma escola, em salas lado a lado, no município de Aracruz. Ela confirma que o filho sempre mostrou resistência em se tornar professor, mas que percebia a vocação. “Hoje, eu vejo nele um professor que admiro muito,  porque, acima da teoria, tem a afetividade”, ressalta.

A filha mais velha seguiu os passos da mãe e o do meio se formou engenheiro, mas ainda nutre a vontade de dar aulas no futuro. “Passamos por momentos muito difíceis mesmo. Às vezes, amigos nos ajudavam até com cestas de alimento, quando o Helder era bem pequenininho”, relata Rogéria.

Mesmo quando a jornada da mãe solo era tripla, não faltava a leitura antes da hora de dormir, e os fins de semana na praia eram os momentos de a família se divertir. Após 44 anos dedicados à sala de aula, ela pretende se aposentar do último emprego este ano e se dedicar ainda mais ao trabalho voluntário no espaço Confabulando.

Se depender do caçula, a jornada de inspiração da família e da população de João Neiva, entre livros e histórias de moradores anônimos a premiados escritores, ainda vai render muitos frutos. “Os livros e a educação mudaram a minha vida, me ajudaram a entender quem eu sou — nos meus percursos, nas minhas jornadas”, afirma Helder.

Por Mariana Niederauer do Correio Braziliense

Foto: Prêmio Educador Nota 10/Divulgação / Reprodução Correio Braziliense