Famílias do DF buscam caminhos para sair do vermelho e limpar o nome

Maioria dos lares do Distrito Federal enfrenta problemas financeiros e endividamento, com aumento significativo na inadimplência impulsionado pelo uso do cartão de crédito. Especialistas alertam para mudança de hábitos de consumo

Parcelas acumuladas, cartão de crédito estourado, nome negativado. Para muitos moradores do Distrito Federal, sair das dívidas virou prioridade — e também um desafio diário. Diante do aumento do custo de vida, da inflação que pesa no carrinho do supermercado e da dificuldade em guardar dinheiro, as famílias têm buscado diferentes caminhos para reorganizarem as finanças e saírem do vermelho. Uma das alternativas encontradas tem sido recorrer a linhas de crédito com juros mais baixos. Especialistas, porém, alertam para a necessidade de mudança na relação com o consumo e maior educação financeira. 

Entre 21 de março e 3 de abril, mais de 11 mil pessoas no DF contrataram o novo consignado do Crédito do Trabalhador, disponível por meio da Carteira de Trabalho Digital. O valor médio dos contratos ultrapassa R$ 9,8 mil — e é o maior entre todas as unidades da federação. Apesar das novas linhas de créditos, o endividamento segue afetando boa parte das famílias do Distrito Federal. De acordo com a última Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Distrito Federal (Fecomércio-DF), em março de 2025, 66,7% das famílias brasilienses declararam ter algum tipo de dívida — o que representa mais de 710 mil lares na capital federal.

O cartão de crédito foi o responsável por levar Katiane Quintanilha, 25, ao endividamento e ao nome sujo no Serasa. Ela conta que precisou trancar a faculdade após acumular mensalidades atrasadas, muitas vezes pagas com o próprio cartão. “Meu pai diz que é melhor dever um empréstimo do que um cartão”, afirma a moradora de Águas Claras. Hoje, Katiane evita completamente o plástico: “Cartão de crédito, eu não uso mais”.  

Inadimplência alta

Mais preocupante ainda é o crescimento da inadimplência. O percentual de famílias com contas em atraso saltou de 26,7%, em março de 2024, para 49,5% no mesmo período deste ano. Isso significa que cerca de 431 mil famílias estão com pagamentos pendentes. Além disso, 18,6% das famílias afirmaram que não terão condições de quitar suas dívidas, número que se mantém estável em relação a fevereiro, mas bem acima do registrado no mesmo período do ano passado, quando o índice registrado foi de 14,4%.

A pesquisa também revela um recorte importante por faixa de renda. Famílias com renda de até 10 salários mínimos concentram os maiores índices de endividamento. Nessa faixa, 15,2% se declaram muito endividadas, enquanto, entre as famílias com renda superior a 10 salários mínimos, esse número cai para 8,8%. Já as famílias com maior renda também se destacam por terem uma parcela maior sem qualquer tipo de dívida: 45,2%, ante 27,8% entre os que ganham menos.

Para além das estatísticas, o endividamento revela-se um cenário multifacetado, no qual uma sequência de eventos leva pessoas a um espiral — por vezes sem fim — de dívidas. A PEIC revela que o cartão de crédito segue sendo o grande vilão das dívidas no DF, apontado por 68,5% das famílias endividadas. Entre os lares com renda até 10 salários mínimos, o uso do cartão como forma de crédito é ainda mais comum: 73,6%. Outros tipos de dívida frequentes nessa faixa de renda são o crédito pessoal (14,4%) e os carnês (11,2%). Já entre as famílias com renda mais alta, predominam o financiamento de casa (25,6%) e o financiamento de carro (18,4%).

As contas fixas são o maior desafio financeiro de José Felipe Pereira, 51. “Água, luz e telefone são obrigações que não dão trégua”, lamenta o bombeiro hidráulico do Gama. Com um irmão acamado e custos fixos com cuidador, ele enfrenta uma “dívida eterna”. Embora já tenha recorrido a empréstimos em cadeia, ele também critica o cartão de crédito: “É um dos vilões”. Para ele, a falta de flexibilidade no orçamento é o que mais sufoca as famílias.  

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grafico dividas 2025-01(foto: Pacífico)

Gasto descontrolado

Especialistas, no entanto, alertam que o primeiro passo para quem quer se livrar das dívidas não está em pegar mais dinheiro emprestado, e sim em mudar a relação com o consumo. George Sales, coordenador de mestrado da Faculdade da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI), aponta que o Distrito Federal vive um cenário preocupante impulsionado por erros recorrentes do uso do crédito.

Outro problema frequente é a má utilização do empréstimo consignado, muito acessível a servidores e aposentados. “Muitos refinanciam dívidas antigas sem um plano claro, apenas postergando o problema e aumentando o custo total”, explica. Para ele, o produto pode ser útil na reestruturação financeira, mas só funciona quando há disciplina e acompanhamento profissional.  

O professor do Centro Universitário de Brasília (CEUB) Marcelo Valle alerta para os riscos do crédito fácil e da falta de educação financeira. “Muitas pessoas têm dois, três ou até mais cartões, além de várias linhas de financiamento. Sem preparo, acabam assumindo compromissos sem real noção do impacto no orçamento”, explica. 

João Pedro Santos, 25, teve sua primeira experiência com cartão aos 15 anos e, desde então, luta contra o ciclo de gastos excessivos. “Comecei a gastar mais do que ganhava e usei o dinheiro do mês seguinte para pagar faturas”, relata. Para ele, pequenos gastos com transporte por app e alimentação se acumulam silenciosamente, tornando-se uma bola de neve. “O cartão é uma das piores dívidas por causa dessa facilidade”, conclui o jovem do Gama.  

Soluções possíveis

O economista Bruno Corano, da Corano Capital, ressalta que, quando o orçamento está apertado, o crédito se torna ainda mais caro, agravando a situação. “Dívida nunca é uma boa opção nesse cenário”, afirma. Quem, entretanto, insiste nos empréstimos deve ter cautela. “É preciso analisar as taxas de juros e o percentual da renda comprometida”, orienta.

Corano também destaca que o cartão de crédito, quando bem administrado, pode ser uma ferramenta útil, mas seu uso sem planejamento é um dos principais motivos de endividamento. “Ele deve estar dentro do orçamento, não como um extra”, defende. Para quem já está com juros altos, a recomendação é priorizar o pagamento das dívidas. “Separar 20% da renda mensal para quitação já é um bom começo, mas quanto mais, melhor.”

Por sua vez, Valle alerta para o cuidado na hora de renegociar dívidas. Ele lembra que muitos credores oferecem bons descontos, mas o consumidor deve avaliar se conseguirá cumprir o novo acordo. “Não adianta fechar negociação se as parcelas não cabem no orçamento. Planejamento é fundamental”, pontua. O especialista também ressalta que a educação financeira é a chave para prevenir novas dívidas, sobretudo em um país onde o tema ainda é pouco abordado nas escolas. “Sem noções básicas de orçamento e crédito, muitos jovens entram na vida adulta já endividados”, lamenta.

Confira as dicas

  • Mudar a relação com o consumo
    • Evitar pegar mais dinheiro emprestado como primeira solução
    • Analisar e modificar hábitos de consumo que levam ao endividamento
    • Usar o cartão de crédito com planejamento, dentro do orçamento, e não como um “extra” 
  • Planejamento financeiro
    • Ter noção clara do impacto dos compromissos financeiros no orçamento
    • Avaliar a capacidade de cumprir novos acordos ao renegociar dívidas
    • Planejar antes de utilizar linhas de crédito, mesmo as com juros mais baixos
    • Priorizar o pagamento das dívidas existentes, separando uma parte da renda para isso (sugestão de começar com 20%) 
  • Cautela com o crédito
    • Analisar cuidadosamente as taxas de juros e o percentual da renda comprometida antes de contratar empréstimos
    • Evitar o refinanciamento de dívidas antigas sem um plano claro
    • Utilizar o empréstimo consignado com disciplina e, idealmente, com acompanhamento profissional 
  • Renegociação consciente
    • Avaliar se as novas parcelas da renegociação cabem no orçamento.
    • Não fechar acordos que não poderão ser cumpridos 
  • Buscar educação financeira
    • Desenvolver noções básicas de orçamento e crédito para evitar futuras dívidas.
    • A educação financeira é apontada como chave para prevenir o endividamento, especialmente entre os jovens.

*Estagiário sob a supervisão de Patrick Selvatti

Por Carlos Silva e José Albuquerque do Correio Braziliense

Foto: Lucas Pacífico/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense