O uso dos aparelhos celulares tem se tornado comum entre motociclistas e se consolidado como uma das principais causas de distrações no trânsito e acidentes. Além dos impactos individuais, esses acidentes sobre duas rodas se mostram como um grande desafio de saúde pública. Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), só em 2024, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 164.970 internações por sinistros envolvendo motos — o que representa 78% de todas as hospitalizações por acidentes de trânsito. O impacto econômico também é expressivo: as ocorrências com motociclistas custaram mais de R$ 257 milhões ao sistema, com uma média de R$ 60 mil por pessoa atendida.
Embora não disponha de recorte específico por tipo de veículo nas infrações, o Departamento de Trânsito do DF (Detran-DF) fiscaliza as ocorrências uso de celular por condutores no geral. Entre janeiro e agosto de 2024, nada menos que 50.782 motoristas foram autuados por essa infração. Os números revelam que, em média, 208 condutores são flagrados diariamente manuseando ou utilizando o aparelho enquanto dirigem na capital federal.
Dados mais recentes revelam um cenário ainda mais grave entre motociclistas, já que esse uso dos aparelhos tem gerados consequências. Entre janeiro e maio de 2025, o Detran-DF registrou 54 acidentes envolvendo motociclistas, número superior ao mesmo período de 2024, que teve 42 ocorrências. Em todo o ano passado, foram 97 sinistros com motos e, em 2023, 91. Já o número de mortes cresceu de forma preocupante: 69 em 2023, 74 em 2024 e 48 somente nos cinco primeiros meses de 2025.
Perigo no guidão
Segundo alerta da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), de acordo com diretriz médica elaborada pela entidade, cerca de metade das falhas de atenção ao conduzir (FAC) estão relacionadas ao uso do telefone celular. “Dirigir e usar o celular simultaneamente representa risco real e imediato. Enviar mensagens pelo WhatsApp, conduzindo um veículo a 80 km/h, equivale a estar dirigindo com os olhos vendados por um percurso das dimensões de um campo de futebol oficial”, aponta o relatório intitulado Riscos do uso do telefone celular na condução de veículos automotores.
Aquilla Couto, médico especializado em medicina de tráfego e membro da Abramet, ressalta que o uso do celular por motociclistas no trânsito representa um risco real e imediato à segurança viária, especialmente para aqueles que utilizam a moto como ferramenta de trabalho. “Estima-se que a chance de envolvimento em um sinistro seja até 20 vezes maior para quem conduz utilizando o celular”, alerta.
Ele, porém, destaca que, embora os motofretistas tenham responsabilidade ao manusear o celular enquanto pilotam, as empresas de entrega também devem assumir um papel ativo na prevenção dos sinistros. “As contratantes deveriam ser corresponsáveis. Afinal, quando um entregador sofre uma queda, a empresa também perde um colaborador”, afirma.
Necessidade
Com três anos de experiência como motoboy, Kevin Brandão, 23, vê que os riscos não são apenas teóricos. Ele presenciou acidentes provocados por distrações. “Estava na 302 Sul e vi um colega sair do semáforo olhando para o celular. Um carro veio e bateu nele na hora”, relembra. “A gente tem que usar GPS para tudo, então, às vezes, dá uma olhadinha rápida, aceita um pedido, confere a rota. Mas é nessa hora que o acidente pode acontecer”. O jovem também aponta que muitos motociclistas iniciantes são mais dependentes da tecnologia. “No começo, eu usava GPS até para entregar do outro lado da rua, mas quem não conhece não tem muita opção”, diz.
Apesar dos riscos evidentes, o uso do celular por motociclistas durante o trabalho é quase inevitável. Aos 40 anos, Alessandro Friet atua há pouco mais de um ano como entregador e relata jornadas que podem ultrapassar 12 horas. “A gente evita ao máximo usar o celular em movimento, mas, às vezes, é inevitável”, admite. Para ele, o uso consciente do celular no trânsito exige bom senso, algo que, segundo observa, está cada vez mais raro.
Alessandro reconhece que o celular é uma ferramenta de trabalho importante, mas também acredita que a responsabilidade não pode recair apenas sobre o motociclista. “A cobrança, muitas vezes, pesa mais para quem está ralando. Mas esse debate precisa incluir outros atores também: as plataformas, os gestores públicos e a sociedade”, afirma. Ele aponta, ainda, a pressão por produtividade como um fator de risco. “A taxa (de lucro) é baixa e, para ganhar mais, o cara precisa fazer mais entregas. Isso empurra o trabalhador a usar o celular até quando não deveria”.
Conscientização
Para o especialista em trânsito e professor da Universidade de Brasília (UnB) David Duarte, o uso do celular durante a condução de veículos tornou-se prática comum especialmente entre os condutores que trabalham com entregas. Duarte destaca que, no caso dos motociclistas, o uso do celular enquanto pilotam é ainda mais grave. “No carro, você ainda consegue manter uma das mãos no volante. Na moto, não. Os controles estão nas mãos — o freio e a embreagem são manuais. Além disso, o motociclista precisa manter o equilíbrio. Tirar uma das mãos do guidão para segurar o celular é extremamente perigoso”, afirma.
O especialista, no entanto, destaca que é importante levar em conta que o combate ao problema passa principalmente pela educação e conscientização. “Muitos motociclistas usam como uma ferramenta necessária para o trabalho. Essa é uma situação complexa entre o uso e a atenção ao trânsito. Mas precisam entender que há formas seguras de fazer isso. O certo é parar o veículo, fazer a ligação ou verificar o endereço, e só então seguir viagem. É uma questão de autoproteção”, conclui.
O que dizem as plataformas
O Correio entrou em contato com as plataformas de entrega (Ifood, Loggi, Rappi, 99app e Zé delivery), mas somente a Ifood respondeu. Veja o que a empresa diz:
Em resposta aos riscos associados ao uso do celular no trânsito por motociclistas, o iFood afirma que a segurança dos entregadores é prioridade absoluta e rejeita qualquer tipo de pressão por agilidade que possa incentivar comportamentos perigosos. A empresa reconhece que o uso do celular enquanto se pilota é comparável, em termos de risco, à condução sob efeito de álcool — aumentando em até 400% a probabilidade de acidentes. Por isso, orienta que o acompanhamento de rotas seja feito exclusivamente por meio de suporte fixado no guidão, com manuseio apenas quando o veículo estiver parado. O aplicativo já calcula o tempo de entrega considerando os limites de velocidade das vias, evitando prazos irreais e incentivando deslocamentos seguros. Para reduzir a necessidade de interação com o celular durante a pilotagem, o iFood afirma investir em funcionalidades como rotas otimizadas, alertas de segurança e incentivos a boas práticas por meio do programa Visão Zero, lançado em 2024. A iniciativa promove campanhas educativas, treinamentos presenciais e online, e já capacitou mais de 100 mil entregadores em direção defensiva e uso responsável do celular.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press