O crescimento do e-commerce tem sido impulsionado pela praticidade e pelos preços atraentes. A China, um dos principais parceiros comerciais do Brasil — o país importou US$ 42,18 entre janeiro a julho deste ano, aumento de 19,3% em relação ao mesmo período do ano anterior — tem uma participação significativa neste mercado, inclusive competindo com gigantes nacionais.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDic), quando se trata do varejo, eletrônicos como smartphones e outros dispositivos; roupas, brinquedos, artigos de decoração e ferramentas, estão entre os principais itens importados do país asiático. Fazer esses produtores chegarem às mãos dos consumidores é tarefa para os entregadores das plataformas digitais. No DF, eles somam 41 mil pessoas segundo levantamento da PNAD do IBGE, como o Correio revela na reportagem especial Formiguinhas da Logística.
A comunicadora Jéssica Nascimento, 33 anos, é uma consumidora assídua de produtos adquiridos virtualmente. “Sempre consumi roupas, sapatos, acessórios, produtos de beleza. Mas, agora, estou mais em busca de produtos de casa. Me casei há quase um ano, e mobiliamos nosso apartamento praticamente com tudo on-line: geladeira, TV, itens de decoração”, contou.
Para ela, os preços são a principal vantagem e compensam o tempo de espera. “Os preços são incomparáveis. Quando o produto é mais caro, sempre vou até a loja, vejo de perto e, depois, compro on-line. Os produtos chegam em menos de uma semana na minha casa. Os de origem internacional demoram mais ou menos 15 dias. Mas vale muito a pena, mesmo com taxação”, complementou a consumidora.
Flexibilidade
Mãe solo de dois filhos, que sustenta sozinha, Érica de Brito Silva trabalha com entregas há três meses. Por dia, são entre 90 e 110 pacotes. “Às vezes, tem mais de um no mesmo endereço, então, diminui um pouco a quantidade de paradas”, diz. Para complementar a renda e custear a gasolina, a Érica atua, ainda, como motorista de aplicativo, dedicando três horas por dia a essa atividade. “Já trabalhei no (regime) CLT, mas de forma autônoma, consigo ajustar melhor a minha rotina com a dos meus filhos e também passar mais tempo com eles. E respeito os meus limites físicos e mentais”, acrescenta.
Especialista em empreendedorismo, Flávio Hideo avalia que a gig economy reflete mudanças naturais nas relações de emprego. “Principalmente as novas gerações estão atrás de mais liberdade e autonomia, sem estarem presas a modelos engessados e burocráticos como da CLT. E esses bicos sob demanda, além de injetarem dinheiro rápido na economia, muitas vezes são portas de entrada para um próximo passo, que é o empreendedorismo”, analisou.
“Precisamos evoluir as relações de emprego. Para isso, a regulamentação é importante para que todos exerçam suas atividades de forma segura, com respaldo legal. Isso só não deve inviabilizar os negócios, com excessos de burocracia e tributações”, ponderou.
Desafios
Apesar de ser uma atividade que proporciona mais liberdade pessoal e financeira, há desafios diários a serem enfrentados. “Tem o risco que a gente corre com os pacotes. Somos responsáveis por cada encomenda, se acontece algo, o prejuízo sai do nosso bolso. Além disso, algumas pessoas nos tratam mal, sem qualquer educação”, elencou Gustavo Costa e Silva. “Tem, também, a questão da chuva, a gente sofre muito quando chove, porque passamos quase o dia todo na rua”, completou.
Além das questões diárias que impactam na rotina, o longo tempo passado no trânsito também pode afetar a saúde mental dos trabalhadores. Segundo a neuropsicóloga Juliana Gebrim, o estresse do trânsito pode causar efeitos como irritabilidade, ansiedade, dificuldade de concentração e insônia.
“Além disso, o fato de estarem sempre em alerta desgasta o cérebro, ocorrendo o que chamamos de “fadiga mental”. Isso acontece porque o cérebro humano não foi feito para funcionar em estado de alerta o tempo todo. Quando is onselhou so acontece, o corpo libera mais cortisol, o hormônio do estresse, o que afeta o humor, a memória e a imunidade”, alertou.
“A longo prazo, essa sobrecarga pode contribuir para quadros de depressão, transtornos de ansiedade e até sintomas físicos, como dores crônicas e gastrite. A rotina intensa e solitária, com pouco descanso e sem horários fixos, também prejudica o equilíbrio emocional. Por esses motivos, o acompanhamento psicológico pode ajudá-los a entenderem melhor suas emoções, lidarem com o estresse diário e encontrarem formas mais saudáveis de se cuidar”, aconselhou neuropsicóloga Juliana Gebrim.”A longo prazo, essa sobrecarga pode contribuir para quadros de depressão, transtornos de ansiedade e até sintomas físicos, como dores crônicas e gastrite. A rotina intensa e solitária, com pouco descanso e sem horários fixos, também prejudica o equilíbrio emocional. Por esses motivos, o acompanhamento psicológico pode ajudá-los a entenderem melhor suas emoções, lidarem com o estresse diário e encontrarem formas mais saudáveis de se cuidar” Juliana Gebrim, neuropsicóloga
“Mas algumas práticas simples e mudanças na rotina podem fazer diferença: ouvir músicas leves ou podcasts que tragam bem-estar, fazer pausas curtas ao longo do dia para respirar profundamente, alongar o corpo, beber água com frequência e manter horários para se alimentar”, concluiu.
Jornadas duplas
As jornadas duplas, longas e desgastantes fazem parte da rotina desses trabalhadores. Muitos deles dividem o trabalho de entregadores com empregos fixos, fazendo jornadas, não por escolha, que ultrapassam os limites impostos pelas leis trabalhistas.
Utilizando o método de entregas como renda extra, Carlos Alberto Silva, 30, começou a entregar quando a sua filha nasceu, há dois anos. A reportagem encontrou Carlos em um intervalo entre as entregas. Em meio à correria do dia a dia, ele comentou como é a jornada de trabalho. “Depois de acabar meu expediente no outro trabalho, eu ligo o aplicativo para começar a rodar. Tem dia que começo às 7h, depende muito do meu outro emprego. Aí, costumo fazer entregas até as 22h”, relatou.
Com uma nova integrante na família, Carlos viu as contas apertarem em casa. Essa foi a principal motivação para entrar neste ramo. “É bom porque rodar e fazer dinheiro para pagar alguma conta específica”, disse. Carlos ainda ressalta que é importante ter planejamento para os ganhos das entregas. “É importante ter consciência. Vejo muitas pessoas que só trabalham para gastar no fim de semana. Geralmente, essas pessoas não conseguem tirar muito sustento das entregas”, afirmou.
Assim como Carlos, histórias de vidas duplas podem ser ouvidas por outras centenas de entregadores. Marileila Pereira, 59, também possui um emprego fixo, como cabeleireira e maquiadora. Após encerrar o expediente no salão de beleza, ela desbrava as ruas do Sudoeste com sua moto.
Apaixonada por motos desde a infância, a moradora do Novo Gama começou no ramo de entrega de alimentos após uma epifania. “Eu comecei a pilotar para evitar o trânsito a caminho do salão. Depois, vi que dava para aproveitar o veículo para ganhar um pouco mais de dinheiro”, disse.
Realizando entregas há pouco mais de um ano e três meses, ela conta que recebeu incentivo e auxílio de um grupo de motogirls. “Tem mais de 100 pessoas que participam do grupo, a administradora do grupo de WhatsApp (Carol) me disse que sustenta a casa dela só fazendo entregas. Isso me motivou muito a continuar”, acrescentou.
Regulamentação
Silvia Araújo dos Reis, professora do Departamento de Administração da UnB (Universidade de Brasília), defende que a última milha, etapa da entrega do produto ao consumidor, representa a mais alta parcela no custo logístico de toda operação. “As empresas podem realizar suas próprias entregas, ou terceirizar parte do seu processo de venda e distribuição, por meio de plataformas. Os entregadores participam dessa etapa, com metas de oferecer um nível de serviço desejável ao cliente”, ressaltou.
Para a especialista, a logística passou por um grande salto durante a pandemia, chamando a nova fase de Logística 5.0. “Com o uso do e-commerce, os consumidores finais foram beneficiados e se tornaram mais exigentes com relação a preço, qualidade e tempo de entrega”, disse.
Sílvia ainda explicou que o boom do e-commerce também propiciou o aumento de empreendedores locais. “As empresas se deparam com desafios para gerenciar a logística que contempla canais virtuais. Positivamente, houve um aumento expressivo de novos comerciantes que aproveitaram a oportunidade de negócio, para produzirem, venderem e entregarem por meio de plataformas on-line”, afirmou.
Sobre os direitos dos entregadores, ela avalia que são necessárias mudanças na legislação para garantir melhores condições de trabalho. “Um exemplo é o projeto de lei (PL) 2479/2025, que trata do valor mínimo de remuneração para serviços de trabalhadores de plataformas digitais de entregas. Iniciativas como: preço mínimo por entrega, pontos de apoio como estrutura adaptada e direitos trabalhistas, proteção social e previdência estão sendo discutidos”, afirmou.
Segundo a pesquisadora e especialista em ciências sociais pela UnB Kethury Magalhães, essa profissão envolve muitos riscos e todos são assumidos por quem realiza, de fato, o trabalho. “Isso inclui o risco de morrer. Para ingressar no ramo das entregas de alimentos e mercadorias, as pessoas precisam ter a CNH, obter uma motocicleta ou bicicleta em boas condições de funcionamento, arcar com os custos dos equipamentos de proteção individual (os EPI’s são: bota, calça, jaqueta, colete refletivo, bag, capacete), comprar um smartphone e adquirir um plano de internet móvel. Tudo isso tem um custo elevado”, salientou.
“Pelo fato de a profissão concentrar muitos jovens, muitos dos trabalhadores não contribuem para a previdência. E como não há vínculo reconhecido, diante dos acidentes, os entregadores e as entregadoras ficam completamente desprotegidos e acabam se endividando ainda mais com os custos médicos e com o conserto das ferramentas de trabalho. Cabe ressaltar que muitas pessoas ficam desassistidas financeiramente até conseguirem retornar ao trabalho, e a saída encontrada é mobilizar vaquinhas, rifas e doações (geralmente entre a própria categoria) para garantir alguma assistência”, destacou.
Por Revista Plano B
Fonte Correio Braziliense
Foto: Ed Alves CB/DA Press