A vegetação nativa do Cerrado ocupa 47% do Distrito Federal, unidade federativa que atrai pesquisadores, estudiosos, ambientalistas e apreciadores do bioma. A fisionomia campestre e de savana do Cerrado torna a vegetação mais exposta ao sol, deixando o bioma mais vulnerável. A falta de uma estrutura de floresta que fecha as copas também dificulta a preservação. Pelo fato de apenas 3% do Cerrado estar em áreas de preservação, a prevenção, restauração e conservação são preocupações constantes do governo e de especialistas.
Segundo o pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, doutor em Ecologia e professor da Universidade de Brasília (UnB), Daniel Vieira, não há a opção de apenas conservar em vez de restaurar. “Há muitas áreas degradadas que precisam ser restauradas por estarem dentro de unidades de conservação”, explica. “Restauração não é apenas recuperar o ecossistema nativo como ele era antes, mas, sim, aumentar a sustentabilidade da paisagem, colocar elementos que vão torná-la mais sustentável”, completa.
O especialista detalha que a maioria das espécies nativas do Cerrado são de difícil recuperação por meio do plantio de sementes. “É possível plantar, mas a presença de capins de pastagens cultivadas, que proliferam nas áreas destinadas à restauração, atrapalha. As espécies exóticas de pastagem são uma barreira”, afirma. “A restauração, nessas condições, demandaria um custo muito grande de manutenção e tempo de espera. É algo que ainda não conseguimos fazer”, acrescenta.
Em cada hectare de Cerrado, há centenas de espécies nativas. Pelo menos 30 milhões de hectares do bioma estão em propriedades privadas e, portanto, vulneráveis ao desmatamento. “Isso demonstra que é muito importante conservar os remanescentes. São necessários incentivos para que essas espécies, que estão em propriedades privadas e, portanto, fora de áreas de preservação, sejam conservadas”, comenta Daniel.
O professor destaca a importância da convivência entre a produção agrícola e a preservação da natureza. “Seja mantendo área de vegetação nativa nas propriedades, seja a integração com a biodiversidade local com pastagens arborizadas, por exemplo, criando corredores ecológicos. É possível colocar práticas restaurativas nas propriedades agrícolas, e isso é de grande importância.”
Pela lei, cada propriedade rural deve ter 20% de reserva legal e área de preservação permanente. “É importante aumentar os mecanismos de fiscalização, fornecer incentivos econômicos para manutenção de áreas de vegetação nativa e aumentar as áreas de unidades de conservação. Além disso, educação ambiental é imprescindível. É preciso haver, ainda, alternativas econômicas para a exploração dos produtos de biodiversidade do Cerrado”, elenca Daniel Vieira.
O ecossociólogo Eugênio Giovenardi é exemplo de dono de propriedade privada que, além de ter recuperado a área de 700 mil m2 que adquiriu no DF, incentiva a preservação do bioma, desde 1974, quando adquiriu a área. “Mirei na possibilidade de ter nascentes de água na região. Cheguei aqui em 1972 e me dediquei a conhecer o Cerrado. Fiquei abismado com o pouco cuidado que as pessoas tinham com o bioma”, afirma.
Giovenardi destaca que o que mantém as nascentes e águas vivas é a vegetação nativa. “Se ninguém preserva, a água vai embora”, observa. A propriedade dele, devido à preservação das nascentes e da vegetação nativa, foi transformada em reserva do patrimônio nacional em caráter permanente.
Queimadas
A devastação causada pelas recentes queimadas tem sido uma ameaça constante e real para o bioma. Pesquisadores da Rede Biota Cerrado estão em expedição pelo Mato Grosso para entender e estudar o efeito das chamas sobre a vegetação nativa. “O fogo natural, causado por raios, ocorre muito esporadicamente. Com a ação do homem, essa frequência aumenta”, salienta o doutor em Biologia de Organismos e coordenador da Rede Biota Cerrado, Guarino Colli.
Ele explica que a frequência das queimadas altera a vegetação nativa e afeta as espécies mais sensíveis. “Muitas espécies do Cerrado gostam de ambientes mais sombreados. O fogo tende a mudar a composição das espécies e favorecer as que gostam mais de ambientes abertos”, diz. “É importante lembrar que o Cerrado está enfrentando uma crise hídrica. A remoção da vegetação natural diminui a capacidade de infiltração da água no solo”, explica.
Colli destacou a importância da valorização da ciência diante da necessidade de preservação do Cerrado. “Estamos enfrentando uma crise de negacionismo científico, causada pela disseminação de desinformação em redes sociais. A ciência tem papel importante na produção de conhecimento para que a sociedade esteja preparada na hora da tomada de decisão sobre várias questões, inclusive, ambientais”, assinala.
Coordenadora do projeto de engajamento público com a ciência da Rede Biota Cerrado, Dione Moura ressalta a importância da preservação do bioma por meio de ações cotidianas. “Se você vive dentro do Cerrado, você deve se comportar como guardião das águas. Se você tem uma chácara ou propriedade rural, você é responsável pela preservação. Se não tem, precisa ficar atento ao uso consciente dos recursos naturais para preservar o bioma em que vive”, ressalta.
Preservação
O Instituto Brasília Ambiental (Ibram) é o órgão local que trabalha para preservar o Cerrado, realizando ações como a promoção das fiscalizações ambientais no âmbito das áreas protegidas de poluição sonora, maus tratos a animais silvestres, entre outras. O órgão atua no âmbito de conservação da biodiversidade, fazendo a gestão de 82 unidades de conservação, das quais 20 possuem sede administrativa, com servidores lotados, vigilância e limpeza. Outras nove unidades são abertas ao uso público com infraestrutura disponível para visitação.
Exemplos de programas desenvolvidos nessas unidades são: Programa de Monitoramento de Recursos Hídricos, com 38 pontos de análises trimestrais, com quatros pontos de balneabilidade com análises quinzenais dentro das UCs; Projeto Reconexão Cerrado, que é uma parceria com a Secretaria de Saúde para compartilhar saberes tradicionais e uso de plantas medicinais, com práticas integrativas de saúde, atendimento à comunidade, elaboração de cursos de capacitação para servidores e para a sociedade civil e o Programa Reviva Parques, que vem fazendo a manutenção geral de várias unidades de conservação.
Setembro em chamas
De acordo com o último balanço do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal (CBMDF), o órgão atendeu a 77 ocorrências de incêndio em vegetação, entre terça e quarta-feira, que resultaram em 452,26 hectares de área queimada. A corporação ressalta que os números se referem exclusivamente a incêndios em vegetação, não incluindo chamados para fogo em lixo, entulhos, amontoados de madeira, queimadas controladas ou situações semelhantes.
Entre os registros recentes, destaca-se uma ocorrência no Complexo Penitenciário da Papuda, em São Sebastião, onde aproximadamente 75 hectares de vegetação foram consumidos, na tarde de ontem. As chamas avançaram em três frentes distintas e o combate foi realizado com abafadores, sopradores, bombas costais e apoio da aeronave Nimbus, exigindo cerca de cinco horas de atuação até a extinção completa do fogo.
Na última quarta-feira, outro incêndio também foi identificado na ML 4 do Lago Norte, no Vale do Palha, próximo a residências. O fogo causou destruição significativa em uma chácara, atingindo cerca de 50% da produção alimentícia. As chamas se espalharam rapidamente, demandando grande esforço das equipes do Corpo de Bombeiros para conter o avanço.
A produtora orgânica Cláudia Costa Bahia, moradora da região há 25 anos, relatou o desespero ao ver sua produção e parte da infraestrutura consumidas pelas chamas. “Eu sei de onde veio o fogo e vou denunciar. Isso não pode mais acontecer”, afirmou.
Na semana anterior, entre 1º e 8 de setembro, o CBMDF havia registrado 254 ocorrências de incêndio em vegetação, que devastaram 2.241,96 hectares. Ao total, até quarta-feira, foram 331 ocorrências, com um total de 2.694,22 hectares destruídos. No comparativo histórico, em todo o mês de setembro do ano passado, foram contabilizados 2.851 incêndios, que queimaram 9.900,92 hectares.
De acordo com o CBMDF, ao longo de 2024 foram registradas 9.445 ocorrências de incêndio, que consumiram 22.250 hectares. Apenas até agosto deste ano, já haviam sido registradas 5.696 ocorrências, com 8.797,7 hectares devastados, números que agora se somam aos dados de setembro.
FOTO LEG
Em comemoração ao Dia Nacional do Cerrado, foi realizada, no Eixo Cultural Ibero-Americano, a tradicional corrida de toras, prática ancestral dos povos Timbira e A’uwe Xavante, dentro da programação do II Encontro e Feira dos Povos do Cerrado. A atividade foi organizada pela Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC), em parceria com Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e a Rede Cerrado, que reuniu povos e lideranças na defesa do bioma e de seus territórios.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Guilherme Felix CB/DA Press