Por que Brasília é uma capital com cada vez menos bebês

Em dois anos, DF teve queda de cerca de 2,3 mil nascimentos. O Correio conversou com moradores da cidade que optaram por não ter filhos e ouviu especialistas sobre causas e impactos dessa decisão

“Eu nunca me entendi como uma pessoa que queria ter filhos”. O relato é da psicóloga Emanuelle Gomes, de 47 anos, moradora de Brasília, mas vem ecoando como um comportamento contemporâneo. Em meio a rotinas intensas, novos projetos de vida e prioridades diferentes, cresce o número de pessoas que escolhem não ter filhos, e, sim, sentem-se completas assim. E as estatísticas mostram que Emanuelle não está sozinha. Segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), no Distrito Federal, no ano passado, foram 43.875 nascimentos, ante 46.188 em 2023 — um número 2.313 menor, uma queda de aproximadamente 5% na natalidade. Já em 2025, foram 32.650 até a publicação da matéria.

De acordo com o Censo 2022: Fecundidade e migração: Resultados preliminares da amostra, pesquisa realizada peloInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil apresentou uma taxa de fecundidade total de 1,55 filhos por mulher em 2022, tendo o Distrito Federal como a Unidade da Federação com a menor taxa, estimada em 1,38 filhos por mulher. Play Video

Emanuelle decidiu cedo que não queria ter filhos. “Sempre me foi muito claro que ter um filho é uma responsabilidade enorme. Nunca me senti disponível ou inclinada para isso”, diz a psicóloga. Mais velha, teve a sorte de encontrar, no antigo casamento, um parceiro com o mesmo pensamento. Mas a escolha por métodos definitivos esbarrou em dificuldades. “Eu usava anticoncepcional, mas o uso prolongado de hormônio me preocupava, por causa do histórico de câncer de mama na família”, conta.

Ela conta que ouviu muitas negativas de médicos para realizar o procedimento de laqueadura. “Eu tinha a idade mínima e, mesmo mostrando a lei, muitos médicos se recusavam. Diziam que era mutilação, que poderiam ser processados”, desabafa.

A alternativa veio com a vasectomia do seu, à época, marido. “Era um procedimento simples, ambulatorial. Ele fez e tudo correu bem. Com isso, pude parar de tomar a pílula. Foi libertador”. Para ela, o processo evidenciou um contraste: “Para os homens, o processo é mais simples. Não tem o mesmo estigma, o mesmo julgamento”.

Disparidade cultural

A fala de Emanuelle encontra voz nos números. Os dados da Secretaria de Saúde do DF refletem essa contradição. Embora a vasectomia seja um procedimento mais simples e menos invasivo, ela é bem menos realizada do que a laqueadura. De acordo com a SecArpenia de Saúde, em 2023, foram 1.357 vasectomias contra 1.789 laqueaduras. Em 2024, a distância aumentou: 1.073 vasectomias e 2.645 laqueaduras. E até junho deste ano, foram 1.560 laqueaduras contra 481 vasectomias.

Segundo a neuropsicóloga Keli Rodrigues, essa disparidade não é só técnica ou médica, é também cultural. “Ainda vivemos em uma cultura fortemente marcada por normas sociais que associam a realização pessoal à parentalidade. Existe uma expectativa coletiva — muitas vezes inconsciente — de que formar uma família inclui, obrigatoriamente, ter filhos”. 

A especialista explica que, diante desse cenário, a escolha pela não maternidade é frequentemente deslegitimada. “Quando alguém diz que não quer ter filhos, especialmente em idade reprodutiva, essa escolha costuma ser lida como ‘provisória’. É comum escutar frases como: ‘Ah, isso é fase’, ‘Você vai mudar de ideia quando encontrar a pessoa certa’ ou ‘E quando envelhecer, quem vai cuidar de você?’. Tais respostas refletem mais o desconforto social diante do que foge do esperado do que uma real escuta da autonomia do sujeito.”

Embora a decisão das mulheres costume ser mais questionada, há também homens que optam pela esterilização voluntária, ainda que, na maioria das vezes, não tenha o mesmo peso social. É o caso de Victor Goodman, 27, que tomou a decisão de não ter filhos ainda na adolescência. “Com uns 17 anos, eu já falava que não queria ser pai”, relembra. Na época, faltavam condições financeiras e ele não estava em um relacionamento, mas seu pensamento já era firme: queria conquistar sua independência, ter uma casa, um carro, se aposentar com dignidade, e percebia que, para ele, ter filhos dificultaria ainda mais esse caminho. “Eu só via o custo de vida subindo. Se sem um filho já é difícil, imagine com”, desabafa.

A vasectomia veio quase 10 anos depois, quando teve condições de pagar pelo procedimento. Já estava em um relacionamento e a namorada tomava anticoncepcional injetável, mas Victor conta que quis garantir. “Nunca foi algo que eu quis, não me despertava interesse nenhum”, afirma. Além da ausência de vontade, pesavam também as observações do dia a dia: via outros pais exaustos, enfrentando dificuldades financeiras e emocionais para criar os filhos. Para ele, o procedimento não foi libertador, foi coerente com o que sempre soube sobre si mesmo.

Pós-pandemia

O número de nascimentos no Brasil também segue em queda, de acordo com a Arpen: foram 2.525.095 em 2023 e 2.355.481 em 2024 — até setembro deste ano, somam 1.747.789. Para o economista Renan Silva, professor do Ibmec, o aumento do custo de vida, precarização do trabalho, a alta dos juros, a dificuldade de acesso à moradia e a falta de políticas públicas como fatores determinantes. “Essa conta não fecha, então, nós temos que respeitar a sabedoria da população que está vendo que está inviabilizado um projeto, por exemplo, de família”, afirma o especialista.

Ele também ressalta que, após a pandemia de covid, as pessoas passaram a ter inseguranças ainda maiores. “Na medida em que as pessoas passaram a ter a percepção que o seu negócio pode realmente desaparecer da noite para o dia e você ficar totalmente desprovido de renda, fez com que as pessoas entrassem no campo maior de insegurança. Houve uma taxa de mortalidade muito elevada e isso fez com que as pessoas pensassem duas vezes realmente em ampliar as suas famílias”, argumenta Silva.

Por trás dos números, está um conjunto de decisões e circunstâncias que revelam novas formas de viver a vida adulta, com ou sem filhos. A funcionária pública aposentada Garben Costa, 60, também escolheu não ser mãe e, ao longo da vida, precisou lidar com suposições de que mudaria de ideia, mas ela não se culpa pela decisão que tomou e manteve. “Tem gente que não se realiza com a maternidade. A sociedade que nos impõe isso”, defende. 

Para ela, não ser mãe significou poder investir em sua formação, viver afetos com mais liberdade e manter um ritmo de vida compatível com suas escolhas. E no tempo livre, ela curte a vida. Faz trilhas, viaja, estuda e lê. E mostra que o investimento em si é tão grande que, recentemente, se deu de presente uma viagem para a França. “Agora, minha meta é estudar francês para chegar lá falando a língua”.

Ela conta que a decisão foi muito atrelada às dificuldades que teve em sua juventude. “Acho que tive minha maternagem com meus três irmãos. Vim de uma família extremamente pobre, que passava por necessidade. Então eu decidi não ter filhos e, a partir de um determinado momento, decidi cuidar só de mim”, conta. 

Imposição social

Em 2022, a jornalista Andreza Nunes, 31, decidiu transformar em livro uma escolha que a acompanha desde os 7 anos. “Brincar de boneca era tranquilo, ela não faz necessidades, não precisa comer, não precisa se vestir. Mas eu sempre tive consciência de que ter um filho era diferente”, lembra. O livro, chamado Eu escolho não ser mãe, reúne relatos de mulheres que decidiram pela não maternidade.

Ela conta que, ao olhar para trás, se reconhece como uma criança consciente, e hoje, se vê como uma adulta em paz com sua decisão. “Nunca foi para mim. E está tudo bem”, resume. Sua fala reforça que optar por não ter filhos não precisa vir de um lugar de sofrimento, mas pode simplesmente ser uma escolha legítima, pensada, tranquila. Em meio a tantos julgamentos e expectativas sociais, o direito de decidir sobre o próprio corpo, e o próprio futuro, ainda é um gesto de coragem. E, mais do que nunca, é um lembrete de que a maternidade não é um destino. 

Andreza cita que, entre os relatos reunidos para seu livro, algumas mulheres contaram ter decidido pela laqueadura. “Depois de muita luta, algumas delas na Justiça, foi possível conseguir o mínimo, que é fazer a lei ser cumprida”. Ela se refere à mudança legislativa de 2022, que reduziu para 21 anos a idade mínima para esterilização voluntária e retirou a exigência de consentimento do cônjuge. A conquista, ainda bem recente, representa um passo importante para garantir o que sempre deveria ser básico: o direito de cada um decidir sobre a própria vida.

Mesmo com os avanços, o caminho ainda exige atenção. A advogada especialista em direito da saúde Alexandra Moreschi explica que o procedimento está sujeito a critérios legais: “A pessoa deve ter capacidade civil plena, assinar um termo de consentimento livre e esclarecido, e respeitar o prazo de 60 dias entre a decisão e a cirurgia. Em alguns casos, pode ser solicitada avaliação psicológica, especialmente quando há fatores emocionais recentes, como um aborto.” Para a laqueadura durante o parto, por exemplo, a mulher deve manifestar essa vontade com pelo menos 60 dias de antecedência.

Por Resenha de Brasília

Fonte Correio Braziliense

Foto: Bruna Gaston CB/DA Press