Memórias de uma vida inteira se transformam em arte. O amor é bordado pelas mãos enrugadas de quem experienciou o mundo e carrega uma espécie de bíblia de histórias para contar. Cada linha, cada canção e cada risada se tornam testemunhos de vidas que continuam em movimento.
Essa é a proposta do projeto Cirandas e Histórias na Terra das Memórias, realizado pelo Instituto Cultural Casa de Autores, em parceria com o grupo Paepalanthus e com fomento do Ministério da Cultura (MinC). A iniciativa busca valorizar o envelhecimento de forma leve, divertida e profundamente humana.
Com oficinas, espetáculos e exposições voltadas para o público com mais de 60 anos, o projeto percorre Brazlândia, Ceilândia, Cruzeiro, Estrutural e Taguatinga, levando cultura e afeto até os espaços de convivência de idosos. As atividades, que seguem até 11 de dezembro, têm como principal objetivo celebrar a velhice, fortalecendo laços, autoestima e senso de pertencimento.
Com unhas vermelho-escarlate, batom rosado, colares, pulseiras e brincos brilhantes, um sorriso no rosto e muita cantoria, dona Marlene Pinto, 91 anos, preside, há duas décadas e meia, a Associação de Idosos Paz e Amor (Apaz), no Cruzeiro Velho. O projeto surgiu inicialmente como um grupo de terceira idade. Marlene costumava trazer sua mãe, e ao longo do tempo, a instituição, sem fins lucrativos, se tornou sua segunda casa. “Tenho o pessoal como meus filhos, sou apaixonada por isso aqui”, revela.
Para as oficinas, a casa está recebendo o grupo de teatro Paepalanthus — nome que se refere a uma flor típica do Cerrado, também conhecida como “sempre-viva”. Marlene conta que a atividade favorita é a ciranda em roda: “O povo adora cantar e dançar”.
Jorge Dias, 76 anos, mais conhecido como seu Chula, frequenta a associação há mais de 25 anos e também gosta de se manter ativo: “Estou sempre em movimento. Faço exercício em casa, boto música, gosto muito de música”. Segundo ele, o projeto é “espetacular”. “É muito legal que contamos e ouvimos histórias, para gente relembrar os tempos que era pequenininho”.
Para além da mente ativa, a ação é importante para associação porque precisam de novos idosos. “Está difícil. Durante a pandemia, perdemos muitas pessoas. Antes, tínhamos reuniões com 60 a 80 participantes, hoje temos de 10, 12”, diz Marlene.
Combate a solidão
Para os idosos, atividades de integração, arte e cultura como esta representam uma ponte entre o estado emocional, pertencimento e propósito. A psicóloga e professora universitária do Centro Universitário de Brasília (Ceub) Thayene Belo explica que o isolamento social na terceira idade representa um fator de risco grave para a saúde mental, física e cognitiva, por isso, ações como essa são necessárias: “Essas experiências criam ambientes de convivência, expressão e reconhecimento, elementos fundamentais para o bem-estar psíquico nessa fase da vida. Participar de oficinas, exposições, peças de teatro ou grupos específicos permite que os idosos reencontrem sentido, construam novas conexões e compartilhem vivências, que, muitas vezes, permanecem silenciadas ao longo dos anos”.
Aldanei Menegaz, 64 anos, artista do grupo Paepalanthus, acredita que as atividades desenvolvidas no projeto são essenciais para os centros de convivência de idosos que têm frequentado: “É algo fundamental, porque tira essas pessoas daquele isolamento, de estar em casa. Elas vêm para conversar, se divertem, ouvem uma história, fazem alguma coisa em conjunto”.
Entre os frequentadores da Apaz, Marilda Zillig, de 81 anos, é uma das mais animadas. Ela participa das atividades há cerca de cinco anos e criou muitos laços: “Fiz muitas amizades aqui, é bom ver outras pessoas da mesma idade, é um espelho para nós”.
Para Thayene Belo, o impacto é visível. “O envelhecimento não precisa ser um tempo de silêncio ou de pausa, mas de reinvenção. Cada encontro, cada oficina, cada ação voltada para essa fase da vida é também um gesto de cuidado. Porque a arte, a cultura, os grupos têm a força de relembrar que pertencemos a algo maior.”
O projeto
A atriz Simone Carneiro, 54 anos, integrante do coletivo artístico Paepalanthus, explica que as oficinas têm a narração oral como princípio, mas também incluem bordado, desenho, dança, cirandas, música e encadernação artesanal.
“É legal observar o público masculino costurando. Existe esse preconceito na sociedade, principalmente entre o público idoso, mas estamos conseguindo vencer isso. Estamos percebendo homens muito engajados, bordando”, conta Simone. Seu Chula confirma: “Já sei pregar botão”.
Com agulha na mão e linhas vermelha e verde-capim, a artista interpreta com profundidade histórias e contos tradicionais da época de criança do público, que mergulha em memórias guardadas. “É importante dar voz à infância, nós sempre queremos contar alguma coisa”, explica Marilda, frequentadora da associação no Cruzeiro Velho.
Aldanei adora o momento das narrativas: “É interessante ver que muitos se emocionam. Semana passada trouxemos a história do ‘Homem do Saco’ e perguntei a eles se já tinham escutado, eles contam animados que lembram da história contada ainda quando eram pequenos”.
A iniciativa nasceu em 2018, com a primeira edição realizada na Biblioteca Nacional, quando idosos dos Centros de Convivência (Cecon) eram levados de ônibus para participar das oficinas. Hoje, o projeto cresceu e é realizado diretamente nos espaços onde esses idosos já convivem, fortalecendo o vínculo entre arte e comunidade.
A presidente do Instituto Cultural Casa de Autores, Iris Borges, diz, alegre, que os idosos adoram a iniciativa: “Percebemos o engajamento das pessoas a partir das respostas, dos sorrisos e abraços em agradecimento. De modo geral, a resposta é positiva e sempre ouvimos um ‘até a próxima semana'”.
Com apoio financeiro de uma emenda parlamentar do Ministério da Cultura, o Cirandas e Histórias na Terra das Memórias reafirma, a cada oficina, o valor da experiência e da coletividade. Confira o cronograma das próximas visitas:
Brazlândia – 22/09 à 22/10 – segundas e quartas-feiras – matutino e vespertino, no CECON.
Ceilândia – 27/10 à 03/12 – segundas e quartas-feiras – matutino, no CECON SUL.
Cruzeiro – 01/10 à 11/12 – quartas-feiras – vespertino, na Associação Paz e Amor do Cruzeiro velho e quintas-feiras – vespertino, no Grupo Fraternidade, Cruzeiro Novo.
Estrutural – 25/09 à 25/11- terças e quintas-feiras – matutino, no CECON.
Taguatinga – 23/09 à 9/12 – terças-feiras – vespertino, no CECON Mozart Parada.
*Estagiária sob supervisão de Tharsila Prates
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press











