Considerado berço das águas e coração geográfico do Brasil, o Cerrado tornou-se, também, epicentro de uma emergência ambiental silenciosa. Negligenciadas e longe dos olhos do grande público, centenas de espécies de animais podem desaparecer do bioma. Dados oficiais compilados no Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade (Salve), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), mostram um cenário alarmante: das 5.191 espécies animais presentes no Cerrado, pelo menos 478 estão ameaçadas de extinção.
Os números detalham a gravidade do problema: 64 espécies estão Criticamente em Perigo — o último estágio antes do desaparecimento total na natureza; 129 são classificadas como Em Perigo; 173 estão na categoria Vulnerável; e outras 118 são consideradas Quase Ameaçadas, prestes a ingressar na lista vermelha. Somadas, essas categorias representam centenas de animais que correm o risco de desaparecer e, caso a trajetória atual se mantenha, serem vistas pelas próximas gerações apenas em ilustrações científicas.
A lista das 64 espécies Criticamente em Perigo de extinção é um retrato da diversidade e da vulnerabilidade do Cerrado. Ela abrange desde peixes minúsculos, que completam seu ciclo de vida em poças efêmeras, até aves icônicas e misteriosas.
Entre os peixes anuais do gênero Hypsolebias, coloridos e especialistas em sobreviver em ambientes extremos, a destruição de suas lagoas temporárias significa a morte instantânea. O pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), uma das aves aquáticas mais ameaçadas do mundo, vê seus últimos refúgios de águas limpas e rápidas serem assoreados e poluídos.
A rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis), considerada extinta por décadas e redescoberta recentemente, luta pela sobrevivência com uma população ínfima. O bicudo (Sporophila maximiliani), outrora comum, foi levado à beira da extinção pelo tráfico de pássaros. O majestoso mutum-pinima (Crax fasciolata pinima), uma subespécie endêmica do Maranhão, é vítima da caça e da perda de habitat.
Nas cavernas, um mundo inteiro de espécies troglóbias — adaptadas à vida no escuro — está em risco. Peixes cegos, como os bagrinhos-de-caverna (Ituglanis spp.), a aranha Isoctenus corymbus e uma diversidade de crustáceos e opiliões (como o Iandumoema uai) dependem da integridade dos frágeis ecossistemas subterrâneos, ameaçados pela mineração, pelo desmatamento e pela contaminação da água.
Pressão
Especialistas são unânimes em apontar que a recuperação e a preservação da savana brasileira são fundamentais para a conservação da biodiversidade. Kenya Carla Cardoso Simões, bióloga e mestre em Ecologia, explica que o desaparecimento de animais decorre de um conjunto de pressões interligadas, sendo as principais delas a perda e a fragmentação dos habitats naturais, provocadas pela expansão da fronteira agropecuária, especialmente na região do MATOPIBA — área de expansão agrícola que abrange parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Esse processo cria “fragmentos isolados, onde muitas espécies não conseguem sobreviver por falta de espaço, alimento e conectividade”. O uso inadequado do fogo, os agrotóxicos e as mudanças climáticas atuam como fatores multiplicadores da crise. O impacto mais estrutural, segundo a especialista, é o colapso da segurança hídrica.
Conhecido como “berço das águas”, o Cerrado, com sua vegetação de raízes profundas, “atua como uma esponja natural”. Com o desmatamento, “o solo perde sua capacidade de retenção, o escoamento superficial aumenta, as vazões dos rios diminuem e nascentes e veredas desaparecem”, alerta Kenya. Esse ciclo vicioso está “transformando o Cerrado em um ambiente cada vez mais quente, seco e empobrecido”, completa.
Para reverter esse cenário, a especialista defende que o Cerrado precisa “deixar de ser tratado como uma vegetação de segunda classe” e receber políticas específicas. Na opinião dela, a efetividade de medidas como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento no Bioma Cerrado (PPCerrado), do governo federal, embora tecnicamente sólido, “dependerá de prioridade política constante e de políticas econômicas ajustadas à realidade produtiva e socioambiental do bioma”. A recuperação, conclui, exige uma mudança de lógica: “Tratar a conservação não como obrigação legal, mas como oportunidade econômica”, destaca a bióloga.
Grito por ação
Enquanto dados oficiais e especialistas apontam para a possibilidade de extinção de centenas de espécies, as comunidades quilombolas, das mais fundamentais guardiãs do Cerrado, vivem, no seu cotidiano, as consequências concretas desse desaparecimento. “Para nós, esses desaparecimentos têm impacto direto em nossas vidas, pois dependemos diretamente da fauna e da flora para o nosso bem-estar”, relata Jhonny Martins, um dos líderes da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Martins elenca o que tem se tornado cada vez mais raro: “Araras, beija-flor, tucanos, tatus, cutias, jacus…” e, na flora, “ipês, sangra d’água, aroeiras, alfavaca, milome”. Para ele, essa não é uma mera lista de perda ecológica, mas cultural. “Nossa cultura é baseada na natureza”, assinala. “Precisamos das palhas das palmeiras para fazer sombras para nossas festas, da inspiração da observação da fauna para produzir nossas músicas. Sem esses elementos naturais, não temos inspiração para manter o saber. Nosso conhecimento é baseado na convivência com a natureza”, ressalta.
Sobre o futuro, Martins é direto: “O Cerrado vai acabar, porque o que a gente vê é uma certa autorização para essa destruição”. Ele critica o fato de o bioma ser tratado como “de segunda categoria” nas políticas ambientais, destacando que “a destruição do Cerrado traz consequências, também, para o bioma amazônico”.
Proteção
Em nota, o ICMBio informou que o dever institucional do órgão é executar políticas públicas para a preservação da biodiversidade brasileira. “Não fazemos, portanto, distinção de espécies.” A estratégia central de mitigação do problema, segundo o instituto, está ancorada na criação de áreas protegidas, seguindo a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). “Essa abordagem visa proteger habitats inteiros, salvaguardando as complexas teias de vida, em vez de focar em espécies individuais.”
O ICMBio destacou, ainda, que a preservação da fauna é uma necessidade prática para a sociedade. Em sua nota, o instituto ressaltou que “os animais desempenham papéis fundamentais na manutenção do equilíbrio ecológico dos biomas”, atuando em processos vitais, como “polinização, dispersão de sementes, controle de pragas e ciclagem de nutrientes”.
O órgão alertou que o desaparecimento de uma única espécie pode causar “desequilíbrios em cadeia”, enfraquecendo a resiliência da natureza, e relacionou a sobrevivência da fauna diretamente ao bem-estar humano. “A fauna é indispensável para a manutenção dos chamados serviços ecossistêmicos — os benefícios que a natureza oferece às sociedades humanas”, afirmou.
A conclusão da nota do instituto serve como um resumo do desafio: “Preservar a fauna, portanto, não é apenas uma questão ética ou estética, mas uma necessidade prática para assegurar a continuidade da vida e a sustentabilidade dos recursos naturais dos quais dependemos”.
Desmatamento zero até 2030
O governo federal lançou, em 2023, a 4ª fase do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado), que vai vigorar até 2027, com o objetivo de reduzir a perda de vegetação nativa e alcançar o desmatamento zero até 2030. O plano está estruturado em quatro eixos principais: atividades produtivas sustentáveis, monitoramento e controle ambiental, ordenamento fundiário e territorial, e instrumentos normativos e econômicos.
Entre os destaques da medida, está a meta de eliminar o desmatamento ilegal e compensar a supressão legal por meio de incentivos econômicos e recuperação de áreas degradadas. Estão previstas ações como a implementação de sistemas de rastreabilidade de produtos agropecuários, a ampliação do manejo integrado do fogo e a estruturação de um “Fundo Biomas” (ainda sem fonte de recursos definida) para financiar a conservação.
O plano prevê, ainda, a revisão dos Zoneamentos Ecológico-Econômicos (ZEE) — instrumento de planejamento territorial que divide o território em zonas, baseando-se em suas características ambientais e socioeconômicas — estaduais. É prevista a possibilidade de ampliação da reserva legal em até 50% em áreas críticas, além da definição de áreas prioritárias para compensação ambiental.
Também será revisado o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc) — ferramenta que ajuda agricultores a planejar o plantio e indica as épocas de menor risco de perdas por problemas climáticos — para culturas como soja, milho e cana, orientando a expansão agrícola de acordo com a disponibilidade hídrica. Outra frente é a integração de dados de autorizações de desmatamento estaduais no sistema federal (Sinaflor), essencial para distinguir o desmatamento legal do ilegal.
Além disso, o PPCerrado busca fortalecer a governança territorial com a destinação de terras públicas para proteção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, que hoje representam apenas 13% da área total do bioma. Também estão previstas a criação e a consolidação de unidades de conservação, a regularização fundiária de territórios coletivos e a implementação de instrumentos econômicos, como pagamento por serviços ambientais e cotas de reserva ambiental.
Com metas anuais de monitoramento e transparência, o plano pretende reverter a tendência de alta no desmatamento, que atingiu 10,7 mil km² em 2022, e assegurar a conservação do Cerrado como patrimônio nacional.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Amarildo de Castro/CB/D.A Press











