“Fui abandonada pelo pai da criança durante a gestação”, conta Poliana Sobrinho, de 34 anos, com a voz embargada e os olhos marejados. À espera da pequena Isabela, na 39ª semana de gestação o que deveria ser um momento de expectativa doce e amor em dobro, transformou-se num período marcado pelo abandono, pela solidão e pela reinvenção. “O sentimento que eu tenho é que estou sozinha para tudo. Sei que será só comigo: cuidar, alimentar, educar e proteger. O pai decidiu se ausentar, e é isso. Simples assim.”
De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios Ampliada (Pdad-A), em 2024, o Distrito Federal tinha mais de 164 mil mulheres chefes de domicílio sem presença paterna. A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes-DF) contabiliza 263 mil famílias chefiadas por mães solo, sendo 85,3 mil com crianças de até 6 anos.
Poliana não teve escolha. O pai de Isabela optou por desaparecer. Não quis participar da gestação, nem emocional nem financeiramente. Tampouco demonstrou interesse em reconhecer a paternidade da criança. “A maternidade me foi imposta. Tornou-se uma condição diante da ausência dele”, relata. Apesar da dor, ela não parou. Procurou acolhimento em amigos de confiança, na família e na terapia.
“Além do abandono, houve mentiras. Ele dizia ser solteiro, mas tinha um relacionamento fixo. Quando descobri, me senti enganada, como se tivesse sido usada. Virei noites sem dormir, tomada pela ansiedade, insegura, emocionalmente esgotada. O cansaço não era só físico, era da alma. Estar grávida é um desafio. Estar grávida sozinha, sentindo-se traída e invisível, é devastador.”
Além de Isabela, Poliana é mãe de Théo, de 6 anos. Mas, neste caso, não se considera uma mãe solo. O pai do menino está presente, participa, apoia. “A diferença é brutal. Quando há parceria, há fôlego. Quando não há, a gente só sobrevive.”
Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) revelam que, em 2024, 2.062 bebês foram registrados apenas pelas mães no DF. Só nos primeiros seis meses deste ano, 989 crianças nasceram e receberam apenas o nome materno na certidão.
Resistir por amor
Juliana Araújo, também de 34 anos, transformou dor em força. Após o fim traumático de um casamento, teve que se reinventar para sustentar sozinha os filhos Ryan, 12, e Heitor, 7. “Descobri uma traição quando o Heitor ainda era bebê. Me vi sem chão, mas decidi recomeçar. Por eles. Por mim. Não queria mais que crescessem em um lar marcado por dor.”
Sem apoio do pai das crianças, abriu uma pequena loja de roupas femininas na frente de casa. O quarto virou loja. O trauma virou luta. “Eu me reconstruí. Aprendi a trabalhar por conta. Sou responsável pelo meus filhos em tudo: alimentação, escola, cuidados, despesas. Como sou autônoma, tem mês que entra dinheiro, tem mês que não. E, mesmo assim, eu dou um jeito. Só que, nesse processo, muitas vezes esqueço que também sou mulher.”
Juliana enfrentou ainda outra ferida: a perda do terceiro filho, Gustavo. “O pai não reconheceu a paternidade, nunca esteve presente. Gustavo nasceu com uma doença crônica e faleceu com 7 meses. Durante todo o período de internação, o pai nunca apareceu no hospital. Foi uma dor que não sei se um dia vai passar.”
Após tantas frustrações, Juliana decidiu se fechar para relacionamentos. “Não é medo. É trauma. É cansaço.” Juliana usou da força e coragem para criar o projeto O Jardim da Cura, um grupo de apoio em que mulheres podem compartilhar as dificuldades da maternidade solo e se apoiar.
A empregada doméstica Deuzanira Campos Araújo, 44, carrega no peito um orgulho que faz questão de compartilhar com quem cruza seu caminho. Ela criou os três filhos sozinha, sem nunca depender de ninguém. “Minha filha mais velha, Thássira, tem 26 anos. A Thalia, 18, e o caçula, Thalisson, está com 11. Sempre que precisava sair para trabalhar, deixava os menores com a mais velha. Não era fácil, eu trabalhava muito e tinha pouco tempo com eles, mas meu foco era um só: não deixar faltar nada dentro de casa”, relembra.
Carinhosamente chamada de Deuza, ela conta que os dois primeiros filhos são frutos de um casamento que chegou ao fim após a descoberta de uma traição. Com a separação, o pai das crianças se casou novamente, e a nova companheira não aceitava que ele mantivesse qualquer contato com os filhos.
“Nunca fui atrás de pensão. Sempre acreditei que, se ele quisesse ser pai, a iniciativa teria que partir dele. Mas nunca veio. Nunca aconteceu”, diz, com a serenidade de quem aprendeu a transformar a ausência em força. Hoje, ao olhar para trás, Deuza se emociona. “É uma honra ver que todo o meu esforço valeu a pena. Criei meus filhos com dignidade. As meninas estão casadas, formaram suas famílias, e eu sou avó de três netos. Isso é minha maior conquista.”
Amparo
Programas sociais como Cartão Gás, DF Social e Cartão Prato Cheio priorizam mães solo com filhos pequenos. São mais de 32 mil mães beneficiadas pelo DF Social e outras 30 mil no Cartão Gás, que concede R$ 100 a cada dois meses para compra de botijão de gás. o Cartão Prato Cheio destina R$ 250 por mês para alimentação, e 20 mil mães estão entre as beneficiárias.
O Bolsa Maternidade, um dos auxílios ofertados no nascimento do bebê, entrega uma mochila com itens essenciais nas 32 unidades do Cras do DF. Ana Paula Marra, secretária de Desenvolvimento Social, explica que mães solo enfrentam batalhas silenciosas. “Essas famílias são, em sua grande maioria, chefiadas por mulheres. Por isso, nossas políticas públicas as colocam como prioridade. É preciso garantir autonomia, dignidade e segurança para essas mães e seus filhos.”
Direito a sobrevivência
A professora Janaína Penalva, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora em feminismo e direitos sociais, destaca que o fenômeno das mães solo é especialmente intenso na América Latina e, em sua maioria, afeta mulheres negras. No DF, 37% das mães solo cuidam de dois ou mais filhos. Em áreas como a Estrutural, o índice chega a 46%. No Park Way, é de 14%. “A maternidade solo está atravessada por desigualdades regionais e raciais. E o sistema ainda coloca toda a responsabilidade nos ombros da mulher.”
Do ponto de vista jurídico, a Constituição garante pensão à criança, mas silencia sobre o bem-estar da mãe. “Não dá pra proteger uma criança sem proteger antes quem cuida dela. Mães solo têm suas vidas atravessadas por responsabilidades que não são só delas. Isso impacta o trabalho, os estudos, o lazer, os afetos”, explica Janaína.
O Projeto de Lei 3717/21, aprovado no Senado, visa criar a Lei dos Direitos da Mãe Solo. A proposta prevê pagamento dobrado de benefícios, prioridade em creches, licença-maternidade de 180 dias, cotas de contratação em empresas com mais de 100 funcionários e subsídios no transporte urbano. O texto ainda tramita na Câmara. A medida é voltada para mães cadastradas no CadÚnico com filhos de até 18 anos ou, sem limite de idade, em casos de deficiência.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Bruna Gaston CB/DA Press