Reduzir fatalidades do trânsito é um desafio global e envolve diferentes esferas do governo, além da mobilização da sociedade civil e da comunidade. A campanha Paz no Trânsito, do Correio Braziliense, é um exemplo concreto. Em 1996, Brasília tinha cerca de 500 mil veículos e 704 mortes por ano. Três anos após a iniciativa, o número de óbitos caiu para 431, queda de 38,7% (Leia abaixo Para Saber Mais).
Na reportagem de hoje da série Para ninguém esquecer, o Correio ouviu diferentes especialistas em busca de respostas para conter as tragédias no trânsito. As soluções passam por melhorias na malha viária e planejamento urbano que pense uma cidade para as pessoas; investimento em transporte de massa; redução de velocidades; fiscalização; e criação de sistemas de segurança que considerem os erros humanos.
Visão zero
O Observatório Nacional de Segurança Viária elabora propostas para garantir mais segurança nas estradas. A abordagem parte do conceito de Visão Zero, ou seja, nenhuma morte no trânsito é tolerada. A Suécia foi pioneira na implantação dessa política, que existe também na Noruega, Nova Zelândia e Holanda.
CEO do Observatório, Paulo Guimarães explica que os projetos de Visão Zero consideram diferentes aspectos de um sinistro de trânsito, desde prever erros humanos, que podem ser cruciais, assim como os desenhos das pistas, sinalização, iluminação, entre outros.
Se uma rodovia tem uma curva perigosa, a abordagem tradicional sinaliza e instala radar de velocidade. No programa Visão Zero, outra alternativa pode ser tomada, como construir uma área de escape. “No primeiro caso, o motorista pode exceder a velocidade, ser multado e, ainda assim, provocar um sinistro. No segundo caso, se o motorista erra, ele tem espaço de recuo para ficar em segurança”.
Cidades de 15 minutos
Do ponto de vista do urbanismo, tornar os deslocamentos dos cidadãos mais seguros implica adotar uma política de humanização da cidade, com investimento em mobilidade ativa sustentável — para pedestres e ciclistas —, integrada com transporte público coletivo e redução das velocidades, aponta Benny Schvarsberg, arquiteto, urbanista e professor de planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB).
Ele apresenta ainda um outro conceito. O de “Cidades de 15 minutos”, ou seja, todas as atividades do cotidiano devem ser acessíveis para pedestres e ciclistas em apenas 15 minutos. “Isso significa a descentralização das atividades, sobretudo as estruturais, como trabalho, estudo, acesso aos equipamentos de saúde, cultura e lazer. Tudo isso, próximo às moradias”, explica. “Quanto mais a setorização da cidade, maiores são as distâncias percorridas. Quanto mais distribuídas as atividades estiverem, menores as distâncias percorridas, menor emissão de gases de efeito estufa na atmosfera, menores chances de óbitos no trânsito”, afirma
A morte do biólogo Pedro Deivison, há 19 anos, reúne elementos que vão na contramão do ideal de uma cidade segura. Pedro estava de bicicleta quando foi atropelado no Eixão Sul por um condutor em alta velocidade. O corpo do estudante foi arremessado a 86 metros do impacto. Pérsio Deivison, pai de Pedro, carrega a indignação até hoje do acidente que vitimou o filho. “O corpo do meu filho foi jogado muito longe. Só isso é suficiente para ter uma noção da velocidade que o condutor estava no momento. Depois do acidente, ele não freou, deu meia-volta e passou em um posto para lavar o carro”, diz.
Para Pérsio, a velocidade exclui as pessoas da cidade, não oferecendo oportunidades para uma convivência harmoniosa entre veículos, pedestres e ciclistas. “Temos que trazer mais participação das pessoas para a cidade, temos que ter mais respeito ao pedestre, ao ciclista e àquelas que possuem alguma necessidade especial”, diz.
Dirigir acima da velocidade aumenta substancialmente as mortes nos sinistros de trânsito. Isso, associado às distrações no celular e à alcoolemia ao volante, é uma combinação brutal para as vítimas, segundo o ex-diretor do Instituto de Medicina Legal (IML-DF) e professor da UnB, Malthus Galvão.
Enfrentamento ao luto
O sentimento de perder um familiar é como uma ferida que não cicatriza. Segundo Fabrício Lemos, doutor em psicologia pela UnB, esse sentimento pode ser intensificado em um caso de sinistro de trânsito. “O sentimento aumenta por causa da perda repentina. Isso a torna ainda mais traumática. Outro fator é o sentimento de impotência que cerca a família”, explica.
São diversas formas que as pessoas encontram para tentar lidar com a perda de um ente querido. Nos casos de sinistros de trânsito, é comum a instalação de memoriais — como cruzes e ghost bikes brancas, abordados na primeira matéria desta série — em homenagem às vítimas. Segundo Fabrício, esses monumentos são materializações físicas do luto e podem ser benéficas para o enfrentamento da perda do parente. “Esses atos servem como um ritual, e é muito importante para a elaboração do luto”, afirma.
A família de Pedro Deivison instalou uma ghost bike no local do atropelamento dele. O pai, Pérsio Deivison, afirmou que esse gesto também sensibilizou outras pessoas. “Serve para mostrar a perda de outras pessoas também”, diz. O local é considerado um marco da causa cicloativista em Brasília. Pérsio se emociona ao ver a dimensão que tomou o protesto pela morte de seu filho. “Às vezes, não conseguimos cuidar do local e, quando chegamos lá, vimos que outras pessoas colocaram alguns vasos de flores ou deixavam bilhetes e cartinhas”, conta.
Investimento
O Governo do Distrito Federal tem investido na readequação das vias, na criação de faixas exclusivas para ônibus, nos BRTs, na ampliação e melhoria das ciclovias e na expansão do transporte sobre trilhos.
A expansão da Linha 1, que atende Samambaia, começou e deve durar entre dois e quatro anos. A previsão é de que 10% estejam prontos até o fim de julho de 2026. O custo inicial da obra é de R$ 348.976.013,45, que chegam a mais de R$ 400 milhões com os demais custos associados.
Os recursos são do GDF e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — obra financiada pelo novo PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal.
Três perguntas para Zeno Gonçalves, secretário de Transporte e Mobilidade do DF
Quais são as estratégias do governo para melhorar a mobilidade e reduzir as mortes no trânsito do DF?
Uma das principais ações consiste na adequação de toda a infraestrutura viária para tornar o transporte público mais atrativo, tirando os ônibus da competição do trânsito. Com isso, ele vai chegar mais rápido ao destino e deixa de competir por espaço com outros veículos. Isso se dará por meio de faixas exclusivas e vias segregadas dos BRTs. Além disso, está em fase de estudo a criação de ondas verdes nos semáforos para o transporte público. Os testes serão feitos, primeiro, na Hélio Prates, em Taguatinga.
E quanto à mobilidade ativa?
Temos o programa Vai de Bike, que trabalha para promover as micro conexões com as ciclovias existentes; ampliação da malha cicloviária em 300km; e do projeto de bicicletas compartilhadas.
Um instrumento de planejamento da mobilidade de uma cidade é o Plano Diretor de Transporte Urbano (PDTU). O que esse documento prevê para Brasília?
Estamos em fase de revisão do PDTU e, a partir desse estudo, vamos rediscutir toda a modelagem de operação e as linhas do DF. A pesquisa de origem e destino, que revela como as pessoas se deslocam em Brasília, já está pronto e o DFTrans, juntamente com a UnB, já começou a remodelagem, projetando mudanças para os próximos 10 anos.
Muitos investimentos definidos pelo PDTU de 2012, não foram feitos, como o BRT Oeste (Ceilândia, Hélio Prates, EPTG até a Rodoviária do Plano e a conexão com o Terminal Sul). As obras da EPIG e do Setor Militar, são para tirar do papel o BRT Oeste.
Uma campanha pela vida
A campanha Paz no Trânsito foi lançada em agosto de 1996 e levou 25 mil pessoas ao Eixão pedindo por um trânsito mais seguro. Foi a maior mobilização social daquela década no DF.
A partir da campanha, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que estava engavetado havia três anos no Congresso Nacional, foi discutido e aprovado no ano seguinte, passando a vigorar em 1998. Os parlamentares aprovaram o CTB quatro anos, quatro meses e três dias após a primeira leitura em plenário.
Outra conquista fundamental foi o respeito ao pedestre na faixa, a partir de 1º de abril de 1997, algo inimaginável naquele tempo de tantas mortes nas vias. Hoje, o DF tem cerca de 4 mil faixas de pedestres.
Enquanto isso, o Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran) aumentou o número de agentes de 50, em 1996, para 100 dois anos mais tarde. A quantidade de viaturas, também dobrou: de 25 para 50. Outra medida importante, foi a sistematização dos números de acidentes e mortos no trânsito, o que não era feito com tanto rigor até 1996. Hoje o Detran tem 527 agentes.
* Estagiário sob a supervisão de Márcia Machado
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press