A noite que começa com diversão pode terminar em crime. Os casos de importunação sexual no Distrito Federal cresceram de 925, em 2023, para 1.022, em 2024. E, só entre janeiro e maio de 2025, 399 mulheres denunciaram abordagens indesejadas. Foi o que viveu Nhanja Ribeiro, de 41 anos, economista, que saiu para curtir um show com uma amiga em uma casa de festas na Asa Sul e testemunhou uma cena que a indignou.
Ambas estavam animadas para assistir ao show de um cantor que admiravam. Em algum momento, Nhanja se aproximou do palco para cumprimentar o artista. Foi quando testemunhou a cena: sua amiga, que a acompanhava, foi surpreendida com um beijo forçado na boca. “Nós não tínhamos intimidade com o cantor. Foi muito baixo-astral. A gente foi com a melhor das intenções e saiu arrasada. Perdemos totalmente o clima para continuar no show. E era justamente ele quem tínhamos ido ver”, conta.
O caso, que ainda causa indignação, traz à tona uma pergunta: quando a tentativa de aproximação ultrapassa a linha do respeito e se transforma em importunação sexual?
Consentimento
Para entender o que configura crime, é preciso voltar a 2018, quando o Brasil passou a tratar com mais rigor os casos de assédio em espaços públicos. Sancionada em setembro de 2018, a lei alterou o Código Penal para incluir o crime de importunação sexual, que, popularmente, também é chamado de “assédio”. Desde então, práticas como toques não consentidos, beijos forçados ou esfregões em transportes públicos passaram a ser punidas com pena de 1 a 5 anos de reclusão.
A delegada Adriana Romana, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher I (Deam), lembra que esse tipo de conduta sempre existiu, e reafirma sua relevância. “Diferentemente do estupro, em que há uma violência ou grave ameaça, a importunação sexual é considerada menos grave, mas isso não significa que não seja relevante”, afirma.
Nesse tipo de crime, a palavra da vítima, junto do contexto, é fundamental, e a delegada reforça a importância do registro do boletim de ocorrência para que os agressores sejam devidamente punidos. “Os elementos probatórios ajudam muito a reforçar a palavra da vítima, que, às vezes, é a única prova em um crime como esse. Mesmo que não haja gravação ou outros tipos de prova, vale a pena registrar o boletim de ocorrência. É importante responsabilizar os agressores, porque, caso contrário, não haverá transformação social”.
Do ponto de vista jurídico, o desafio é diferenciar um comportamento inadequado de uma investida criminosa. Para o advogado criminalista Sérgio dos Anjos, o ponto central está na ausência de consentimento. “O flerte legítimo é mútuo, respeitoso e pode ser interrompido a qualquer momento pela outra parte. Já a importunação ou o assédio ocorre quando esse limite é ultrapassado, quando não há reciprocidade, a pessoa insiste, é invasiva ou age de forma inapropriada, seja com palavras ou toques”.
Ele destaca, ainda, que a “era digital” gerou a necessidade das leis se adaptarem o máximo possível diante do avanço tecnológico. O advogado cita, como exemplo, o caso do assédio digital. “A pessoa manda um ‘nude’ ou mensagens diretas com teor sexual. Se é bloqueada, tenta contato por outra conta digital. Isso pode configurar assédio ou até mesmo um crime de stalking (perseguição)”, ressalta.
Flerte digital
Para a psicóloga Rachel Ribeiro, os aplicativos de relacionamento, como o Tinder e o Bumble, transformaram radicalmente a forma como as pessoas se aproximam — e também como ultrapassam os limites. “Muita gente entra no Tinder, por exemplo, pensando só em sexo casual. E tudo bem se for consensual. O problema é quando, no meio do caminho, a pessoa perde a capacidade de ler o contexto: mal começa uma conversa e já manda um nude, ou faz propostas invasivas. Ela está tão habituada a esse ambiente que não percebe que está sendo desrespeitada”, explica.
A distância física oferecida pelas plataformas digitais cria uma falsa sensação de liberdade. “Quando a gente está presencialmente com alguém, há negociações acontecendo o tempo todo: tom de voz, linguagem corporal, o timing. No virtual, não. A pessoa manda o que quiser, como quiser, a qualquer hora, para dezenas ao mesmo tempo. Isso afeta a responsabilidade e a qualidade do flerte”, diz Rachel.
E essa falta de sintonia entre percepção e intenção pode causar situações desconfortáveis, como relata Jorge Ferreira*, 30, advogado. Ele conta que, após trocar likes e mensagens com uma garota, enviou um simples convite para sair, mas foi publicamente constrangido por uma indireta dela nas redes sociais, que ridicularizou a abordagem como “típica dos homens de hoje em dia”.
“Claro que há situações que extrapolam o normal, e isso realmente é reprovável. Mas um convite despretensioso me fez ser zombado. Será que fui rude por tentar me aproximar?”, questiona Jorge.
“No caso da importunação sexual, o DF registrou 925 ocorrências em 2023, número que subiu para 1.022 em 2024. Só nos primeiros cinco meses de 2025, já são 399 registros.
Já o crime de stalking teve um salto em 2024, com 95.026 mulheres vítimas em todo o país, o equivalente a 10 mulheres perseguidas por hora. A alta foi de 18,2% em relação a 2023. O Distrito Federal aparece entre as 12 unidades da federação com taxas acima da média nacional, com um índice 1,7 vez maior.”
O antropólogo Rócio Barreto conta que as formas de flertar mudaram profundamente nas últimas décadas, sobretudo com o avanço da tecnologia e o impacto das redes sociais.
Sobre a influência dos aplicativos de relacionamento, ele destaca que a cultura do “match” transformou a percepção do flerte no mundo real. “Essa cultura trouxe avanços importantes em termos de consentimento e segurança, mas também gerou ansiedade, frustração e dificultou a espontaneidade presencial. Flertar hoje exige sensibilidade, escuta, respeito ao tempo do outro e coragem emocional”, observa.
Sinal vermelho
Barreto aponta que a confusão entre flerte e assédio está relacionada a diferenças geracionais, culturais e à falta de educação emocional e sexual. “Atualizar os códigos do flerte passa pela promoção da comunicação não violenta, empatia e respeito à igualdade de gênero, para que todos sejam tratados como iguais e dentro dos seus limites”, conclui.
Ana Luiza Moraes, 24, estudante, usou aplicativos de relacionamento por seis meses e conta que nunca passou por situações ruins, mas sabe bem como é importante prestar atenção aos sinais desde o começo. “A forma como a conversa começa faz toda a diferença. Se o cara quer foto rápido demais ou tenta me levar para a casa dele logo, isso já acende um sinal de alerta”, conta.
Para ela, o respeito ao tempo e à vontade de cada um é fundamental. “Gosto quando a pessoa conversa, pergunta como foi o meu dia, respeita o espaço e não tem pressa. E, claro, eu sempre dou uma pesquisada rápida nas redes sociais antes de sair com alguém para ver se é quem diz ser.” Quando percebe que alguém ultrapassa seus limites, Ana Luiza é direta: “Bloqueio e sigo minha vida. Acho que a gente, como mulher, tem essa ferramenta muito importante hoje de decidir com quem quer ou não conversar”.
A psicóloga Rachel Ribeiro reforça que esse poder de dizer “não” e estabelecer limites é fundamental para a saúde emocional, especialmente no mundo virtual. “A gente tem uma geração que está muito mais na vida on-line do que na vida presencial. É preciso conversar, alinhar expectativas e deixar claro o que se busca, inclusive nos aplicativos. E, principalmente, entender que o ‘não’ é uma frase completa. Não precisa de justificativa”.
Saiba a diferença
A importunação sexual acontece quando alguém toca outra pessoa de forma íntima, sem consentimento, mas sem usar violência ou ameaça, o que diferencia esse crime do estupro. Muitas vezes, esses toques podem ser sutis e difíceis de perceber, como em casos em que uma pessoa apalpa a outra dentro de um ônibus, por exemplo.
Já o assédio sexual exige uma relação de hierarquia, como no trabalho ou na escola, e envolve insistência ou pressão da parte que tem mais poder. Diferente da importunação, o assédio não precisa de toque, mas está sempre ligado a essa questão de poder e controle. Isso ocorre, por exemplo, com professores, líderes religiosos ou em relações de emprego.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Caio Gomez