A lei federal que proibiu o uso de aparelhos celulares nas escolas, a partir de janeiro deste ano, tem tido reflexos positivos no desempenho dos estudantes da rede pública e privada de ensino do Distrito Federal. No entanto, o uso de smartphones ainda é um risco para a segurança e a saúde mental das crianças e adolescentes. É o que alertam especialistas ouvidos pelo Correio.
Dados mais recentes do TIC Kids Online Brasil mostram a intensidade do uso de celulares entre menores de idade: 81% dos usuários de 9 a 17 anos têm celular próprio, e WhatsApp, YouTube, Instagram e TikTok figuram entre as plataformas mais frequentes nessa faixa etária.
O neurologista Hélio Van Der, integrante do Departamento Científico de Transtornos de Neurodesenvolvimento da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, alerta que a exposição excessiva às telas nos primeiros anos de vida pode causar atrasos na linguagem, na socialização e na coordenação motora, comprometendo o desenvolvimento fisiológico e emocional.
Segundo ele, o uso descontrolado em qualquer fase do desenvolvimento pode gerar prejuízos duradouros, sobretudo na adolescência, período marcado por intensas transformações sociais, hormonais e emocionais. “Nesses casos, o uso excessivo pode evoluir para um verdadeiro vício, semelhante à dependência química observada com drogas ou jogos de azar”, afirma.
O especialista explica que essa dependência digital está ligada à ação da dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. “O cérebro passa a buscar cada vez mais estímulos para alcançar a mesma recompensa. Começa com uma hora de jogo, depois uma hora e meia, duas, três… Até interferir na rotina diária. É o mesmo mecanismo de reforço que observamos em outras formas de dependência”, explica.
A psicóloga infantil Mônica Resende, do grupo Mantevida, reforça que a exposição contínua a estímulos digitais fragmentados — como notificações, vídeos curtos e múltiplas janelas abertas — afeta diretamente a capacidade de concentração e a forma como o cérebro processa as informações.
Ferramentas
“A atenção tende a se tornar mais dispersa, dificultando o foco prolongado e a consolidação da memória de longo prazo. Embora as tecnologias digitais possam ser ferramentas de aprendizagem, o uso excessivo compromete o raciocínio profundo e o pensamento crítico”, ressalta.
Segundo Mônica, a hiperconexão está relacionada ao aumento de ansiedade, estresse e depressão entre crianças e adolescentes. A necessidade constante de estar on-line, o excesso de notificações, a comparação social e a falta de sono de qualidade geram sobrecarga emocional e cognitiva, prejudicando o bem-estar e o descanso mental.
Mônica também alerta para os efeitos psicológicos da exposição a conteúdos idealizados nas redes sociais. “Muitos jovens passam a medir o próprio valor pela aceitação digital, o que enfraquece a autoconfiança e distorce a autopercepção. As redes sociais funcionam como vitrines de vidas idealizadas, em que curtidas e seguidores se tornam métricas de validação social”, explica.
“Para crianças e adolescentes, que estão em plena construção da identidade, essa exposição pode provocar insegurança, frustração e sentimentos de inadequação, com efeitos diretos sobre a saúde emocional e o desenvolvimento psicológico”, completa.
Efeitos da lei
Com o fim do ano letivo se aproximando, a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) celebra os resultados positivos obtidos desde a implementação da norma. Uma pesquisa realizada em março de 2025, com 1.438 profissionais da rede pública, revelou avanços expressivos na qualidade do processo de ensino-aprendizagem:
» 68,7% dos entrevistados relataram melhora na atenção dos estudantes durante as aulas;
» 62,9% observaram maior engajamento nas atividades escolares; 61,1% identificaram impactos positivos na aprendizagem.
Apesar da proibição, ainda há resistência por parte de alguns alunos, que insistem em utilizar o celular durante o horário escolar. No entanto, segundo o diretor do Colégio Sigma da Asa Sul, Gabriel Carvalho, a conscientização tem avançado de forma significativa.
“Os próprios estudantes têm compreendido a importância de manter o foco durante as aulas e reconhecem os benefícios de se desconectar enquanto aprendem. É natural que alguns ainda tentem usar o celular, afinal, o aparelho faz parte da rotina fora da escola. O mais importante é que temos observado um avanço na conscientização”, afirma.
Na unidade, foi adotada a chamada “política do celular invisível”, em que o aparelho deve permanecer sempre guardado e fora de vista durante as aulas. “Para situações excepcionais, criamos a Mobile Zone, um espaço controlado onde o uso pode ocorrer de forma supervisionada”, explica Carvalho.
Quando há uso indevido, o aluno é primeiramente orientado. Em caso de reincidência, aplicam-se medidas previstas na Matriz Disciplinar da instituição, sempre com foco educativo. “O primeiro passo é orientar o estudante sobre o uso adequado. Se o comportamento se repetir, podem ser aplicadas medidas proporcionais, reforçando o aprendizado de convivência e responsabilidade”, detalha o diretor.
O confisco do aparelho é adotado apenas em situações excepcionais. “Evitamos ao máximo recorrer a essa medida, pois acreditamos mais na conscientização do que na punição. Quando necessário, o aparelho é retido temporariamente e devolvido mediante diálogo com o aluno e comunicação à família, muitas vezes com acompanhamento da equipe de orientação”, completa.
Vantagens e desafios
Gabriel Carvalho observa que o uso excessivo de telas têm impacto direto na concentração e no tempo de atenção dos estudantes. “As redes sociais, ao oferecerem estímulos rápidos e recompensas imediatas, acabam prejudicando o engajamento em atividades que exigem raciocínio contínuo, foco e paciência, habilidades essenciais para o aprendizado”, destaca.
Desde a adoção das políticas de restrição, a escola percebeu melhora nas notas e no envolvimento dos alunos. “Embora não possamos atribuir os resultados apenas a esse fator, é evidente que a redução das distrações digitais contribuiu positivamente para o desempenho acadêmico”, afirma.
“O grande desafio é equilibrar o uso da tecnologia como ferramenta de aprendizagem, e não como distração. Vivemos em uma geração hiperconectada, e transformar esse uso em algo produtivo exige mediação constante, clareza nas regras e um trabalho contínuo de formação socioemocional”, conclui.
Alerta
Especialista em crimes cibernéticos, Rodrigo Fragola alerta que pais e responsáveis precisam tratar o smartphone como um ambiente, não apenas um objeto. “O acesso contínuo a redes sociais, jogos, chats e vídeos traz benefícios, mas também exposição a conteúdos impróprios, contatos de desconhecidos e práticas abusivas”, observa.
“No Brasil, a imensa maioria dos jovens usa a internet, e o celular é o principal dispositivo, o que reforça a necessidade de combinar regras claras de tempo e lugar de uso, diálogo constante sobre o que fazem on-line, configurações de privacidade, senhas fortes e, quando pertinente, ferramentas de controle com transparência”, ressalta ele. Fragola avalia que a proibição em sala ajuda a reduzir distrações e conflitos naquele espaço, mas a proteção real acontece no cotidiano, com adultos presentes e coerentes, inclusive, dando exemplo de uso consciente.
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A criminalidade cibernética é real
Hoje, os criminosos se aproximam de crianças e adolescentes sobretudo por meio de perfis falsos em redes sociais, apps de mensagens e chats de jogos, iniciando conversas que parecem inofensivas e afetivas para ganhar confiança, o chamado grooming, até pedir imagens, dados ou induzir a encontros.
Em uma etapa seguinte, é comum a “sextorsão”: com um print ou vídeo íntimo em mãos, vem a chantagem por mais conteúdo ou dinheiro. Também crescem abordagens com links maliciosos e golpes que imitam promoções, convites para “challenges” ou supostos concursos, e, cada vez mais, o uso de IA para montar deepfakes sexuais com rostos de estudantes, recurso já mapeado em escolas brasileiras.
A SaferNet identificou casos de deepfakes em 10 de 27 estados e chamou atenção para o avanço de conteúdos sintéticos; a SaferNet também reportou que mais de 60% das denúncias de crimes na internet envolvem abuso infantil, com o uso de IA em ascensão; e a PF tem operações recorrentes contra redes de exploração on-line, o que mostra a dimensão e a atualidade do problema.
Crianças e adolescentes estão mais vulneráveis porque combinam alta exposição digital com menor repertório para reconhecer manipulação, além de buscarem pertencimento e aprovação social, o que pode levá-los a aceitar convites, clicar em links e compartilhar conteúdos sem avaliar riscos de longo prazo. No Brasil, pesquisas indicam que praticamente todos os jovens conectados acessam a rede pelo celular, com uso diário e multiplataforma; o TIC Kids Online 2024 mostra forte presença em redes sociais e mensageira, e reporta que muitos usam a internet sozinhos em atividades sensíveis.
Essa intensidade, somada ao anonimato dos agressores e às novas técnicas como deepfakes, amplia as assimetrias de poder e torna mais difícil pedir ajuda rápida por vergonha ou medo. O marco legal também evoluiu: a Lei 14.811/2024 criminalizou o cyberbullying e reforçou a proteção, mas a aplicação depende de prevenção, educação digital e canais de denúncia como o Disque 100, um triângulo escola, família e autoridades que precisa funcionar de forma integrada.
Rodrigo Fragola, especialista em crimes cibernéticos
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: freepik












