Fragmentos de concreto e tempo: Brasília debaixo de prédios

Um retrato de quem cresceu entre os pilotis da capital, transformando os blocos em ponto de encontro, refúgio e lembrança de uma juventude que o tempo levou, mas o concreto guardou

Se você foi um jovem em Brasília que frequentava o plano piloto, com certeza viveu momentos debaixo dos prédios da cidade. Pelo menos para mim, os pilotis das áreas nobres da capital testemunharam desabafos urgentes, risadas genuínas e até períodos de ócio, quando o término de uma atividade quase esbarrava do começo de outra, mas deixava um breve espaço de espera. De Renato Russo aos contemporâneos locais, o jovem brasiliense que não quer ficar em casa acaba encostando as costas na parede da portaria de um bloco. 

Foi nesse cenário que vivi minha adolescência. Entre escapadas de aulas da escola onde estudava, deparei-me com pessoas cujo vínculo pela rejeição nos uniu. A afeição deu-se meramente pelo reconhecimento de si no outro — pessoas que preferiam o gelado do chão dos prédios do que a torturante convivência caseira com familiares disfuncionais. Às vezes, o motivo do encontro era simples: o escape do clima imprevisível de Brasília, que permite experienciamos uma chuva torrencial e um calor ardente no mesmo dia. 

Caminhando pela selva de concreto, quase não me sinto sozinha na companhia dos prédios. Pensar que cada janela abriga uma história diferente também me conforta. Em setembro, no começo da primavera, os ipês podem até parecer os protagonistas da ambientação da cidade, mas os que residem aqui sabem que as construções sempre serão uma certeza em qualquer época do ano. 

Mesmo que tivesse meus lugares favoritos, pulava de bloco em bloco conforme caminhava com propósitos diferentes. Embora desejasse do fundo do meu âmago algo para chamar de casa, não permanecia em lugar nenhum para sempre. Bem como a locomoção física, aqueles que me acompanharam na caminhada não eram permanentes. Algumas das minhas memórias favoritas resultaram-se de momentos compartilhados com pessoas que nunca mais pretendo ver novamente, relações cuja atual falta de contato ainda grita uma intimidade uma vez existente. 

Alguns capítulos ainda ecoam risadas, amor e conversas madrugada adentro, mas, assim como a chuva brasiliense, começam e acabam subitamente, sem aviso prévio. Nem sempre há um adeus, e o som da ausência — o silêncio — me lembra de momentos que um dia significaram tudo. Mesmo que temporários, não apagaria os acontecimentos que foram exatamente o que precisávamos na época. 

Não guardo mágoas dos segredos compartilhados e promessas de um futuro que nunca acontecerá. Algumas pessoas foram lições, outras bênçãos, e muitas delas foram as duas coisas. Meu último ato de amor foi deixá-las ir em paz. De prédio em prédio, me despeço de fantasmas do passado que insistem em me cumprimentar toda vez que passo pelos lugares onde moram suas almas. 

Com a vida ficando séria, a possibilidade de gastar tempo debaixo de prédios também foi diminuindo. Ainda assim, ao caminhar pelas quadras barulhentas, percebo que o concreto continua a me abraçar, como se cada coluna fosse um lembrete de quem fui e de quem me tornei. Brasília mudou, assim como eu, mas a cidade mantém vestígios da juventude que se escondeu em seus pilotis.

Às vezes, paro em frente a um prédio e fecho os olhos, imaginando as conversas que ali aconteceram, as risadas e os silêncios que ninguém notou. Há uma espécie de melancolia confortável em reconhecer que o tempo passou e que nós também passamos por aqueles espaços, deixando para trás apenas fragmentos de histórias e sensações que ninguém mais poderá reviver. Como um dia disse Heráclito, “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.”

Essa é a beleza dos prédios de Brasília: sua imobilidade oferece uma estabilidade para memórias voláteis, um ponto de referência para vidas que continuam a se mover. Caminhando entre eles, sinto que, embora nada dure para sempre, sempre haverá um lugar para voltar — mesmo que seja apenas em pensamentos, onde reflexões de um passado vivido sob o concreto permanecem, suaves e eternas.

Por Resenha de Brasília

Fonte Correio Braziliense

Foto:  Ed Alves/CB