Estacionados à beira do Lago Paranoá, atrás da Concha Acústica de Brasília, moradores de motorhomes, sem endereço fixo, vivem entre destinos. Nesse ponto de apoio, e em diversos outros espalhados pelo país, os nômades — como o casal Alairton Baccili, de 60 anos, e Simone Serradourada, 58 — formam vizinhanças temporárias e fazem conexões que levam para a vida. “Por opção, escolhemos ser livres, mas com responsabilidades”, diz Baccili, que viaja pelo Brasil há mais de 40 anos.
O ponto de encontro na capital é fixo e serve de abrigo, atualmente, para cerca de 20 motorhomes vindos de todo o país. Os moradores desses veículos-casa seguem regras comunitárias de convivência e abastecimento de água e de energia. Ao Correio, alguns deles explicaram os desafios de viver com o mínimo e as vantagens de uma vida desapegada.
Baccili conta que, durante sua jornada sem destino fixo, já passou por todo o país de moto, fusca e caminhonete. Hoje, mora em um ônibus-casa que comprou há seis anos do antigo proprietário em um site de revenda. O veículo já foi transporte ferroviário e escolar, mas possui placa cinza, para uso particular. O fotógrafo decidiu morar na estrada após complicações com a síndrome de Fournier, doença autoimune que pode provocar necrose de tecidos do corpo, no período de 2018 a 2019.
Para evitar uma reincidência da síndrome, Baccili busca manter uma boa saúde mental e percebeu que viver na estrada era o seu real desejo: “Tive até profissionais de psicologia que me recomendaram perseguir esse objetivo”, conta ele, ao lado da companheira, também uma viajante de longa data. “Vivo na estrada desde que tenho 20 anos”, lembra Simone, que é artista plástica.
O casal está junto há três anos, mas já se conhecia de eventos de motociclistas em Goiás. Simone conta que, quando seu ex-marido faleceu, Baccili foi uma das pessoas que a acolheu no luto: “Ele me ajudou nesse período difícil e então começamos a nos aproximar”. Os dois vivem no motorhome, viajando por Goiás e pelo Distrito Federal a trabalho, contribuindo em eventos de motociclistas na região. De moto, já percorreram os estados de Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul.
Para se sustentarem, os dois possuem diversas fontes de renda. Baccili é fotógrafo, vende batatas fritas nos encontros de viajantes e, no fim de ano, é Papai Noel em um projeto do Governo do Distrito Federal (GDF), enquanto Simone vende suas pinturas. Eles também dispõem de renda fixa vinda de imóveis — uma prática muito comum entre os nômades. “A grande vantagem é que podemos ter um quintal diferente a cada amanhecer”, acrescenta Simone.
Na casa móvel do casal, cabem uma cama, uma cozinha, um banheiro, armários e um guarda-roupa. “É maior do que muita kitnet. Vivemos uma vida normal, mas gastamos menos do que em uma casa comum”, afirma o viajante. Diferentemente de muitos “motorhomeiros”, que passam a maior parte do tempo fora do veículo, o casal decidiu montar um lar bem mobiliado e aconchegante, mas que, pelo espaço limitado, os conduz a um estilo de vida minimalista. “O pouco torna-se muito”, defende o fotógrafo.
Baccili reforça que, apesar de não possuir emprego fixo, trabalha muito para manter o seu estilo de vida, estudando diariamente sobre mecânica para realizar a manutenção do veículo, e escolhendo ser livre, mas com responsabilidades, inclusive, sociais. De acordo com o nômade, a comunidade de proprietários de motorhome têm uma rede de ajuda extensa, que acolhe viajantes de todos os cantos do Brasil, discutindo os melhores estacionamentos e pontos de encontro: “Em toda cidade onde a gente passa, somos muito bem acolhidos”.
Pé na estrada
Naturais de Salvador, Cesar Galiffi, 61, e Maria Auxiliadora de Andrade, 63, botaram a mão na massa e fizeram, eles mesmos, o motorhome no qual viajam. Galiffi removeu a parte traseira do veículo, originalmente uma van, e colocou um grande baú, equipado com pintura térmica e aquecedor elétrico — para sobreviver a frios intensos —, abastecimento de luz por placas solares, filtragem e armazenamento de água em reservatório de 250 litros. “É suficiente para 15 dias, com boa gestão”, diz o guia de turismo.
Desde 2016, o casal faz trajetos nacionais e internacionais, com paradas temporárias na capital da Bahia, para atualizar o veículo. Na mais recente jornada, há cerca de dois anos, Cesar e Maria cruzaram todo o Brasil, percorreram o Paraguai, Argentina, Chile e Peru. Regressaram ao território nacional pelo município de Assis Brasil (AC) e, atualmente, passam pelo Centro-Oeste no caminho de volta para Salvador.
Eles se lembram de adversidades que passaram no exterior, como quando tiveram a cabine do veículo arrombada por um ladrão, à luz do dia, na Praça San Martin, na Argentina. Os dois, que estavam no “baú” onde dormem e cozinham, evitaram um confronto físico por muito pouco e só perderam alguns pertences.
A principal diferença que sentiram na pele foi a falta de receptividade dos estrangeiros. “Se for para esses países, não dependa de auxílio externo”, recomenda Galiffi, acrescentando que, no Brasil, a sensação de comunidade que se forma entre os nômades faz a diferença.
“Nosso objetivo, no início, era percorrer muitos quilômetros, o máximo que pudéssemos. Mas, com o tempo, percebemos que a melhor parte da experiência é viver o dia a dia”, conta o guia. “O melhor da viagem é conhecer as pessoas. A atração não é o principal, e, sim, o que acontece lá”, complementa Maria de Andrade.
O casal sempre teve o hábito de viajar em fins de semana e férias, mas, somente quando Maria se aposentou, decidiram realizar o sonho da juventude de Galiffi, de ter um motorhome. “Desde os 3 meses de idade, vivo viajando, quando fui de barco para a Itália com meus pais. Morei 20 anos lá, onde tinha o costume de acampar em um local chamado Folônica. Via os trailers e motorhomes e dizia: ‘Um dia eu quero alcançar isso'”.
Rede de apoio
Para Galiffi e Maria Auxiliadora, um bom ponto de repouso deve ter segurança, acesso a comércios e abastecimento de luz e de água. Na Concha Acústica, os motorhomes dispõem de segurança, garantida por rondas da Polícia Militar do DF, limpeza feita pela gestão pública da Concha Acústica e reservatórios comunitários de água, utilizados conforme regras acertadas entre os membros do grupo.
De acordo com o guia, a população itinerante é alvo de preconceito frequente. Ele e a esposa já foram confundidos com caçadores de leões, tatuadores e vendedores ambulantes, e, por isso, tentam disfarçar sua casa, para que se assemelhe ao máximo com um veículo comum: “Muitas vezes, somos vistos como ‘pé-rapados’, mas temos endereço, bens e uma vida que foi alcançada ao longo de anos de trabalho”.
É o caso dos recém-aposentados Iraci Nascimento, 62, e Marcelo do Nascimento, 65, que viajam em uma kombi branca. Com filhos já independentes, o casal decidiu viajar após a aposentadoria de Marcelo e desistiu da vida tranquila que tinham em Pirambu (SE). No início, a decisão era só uma piada, conta Iraci. “Meu marido estava acompanhando viajantes pela internet e disse: ‘Vamos ter essa vida?’. E eu topei. Três dias depois, perguntei: ‘E aí, vamos comprar o carro quando?’. Eu não estava brincando.”
Há mais de um ano, Iraci e Marcelo viajam pelo Brasil. Durante quatro meses, fizeram parte de uma flotilha de quatro motorhomes, que seguiam a mesma rota, dando apoio entre si para qualquer “perrengue”. Iraci destaca que, em cada cidade que visitam, conhecem pessoas novas e que, durante o trajeto, fizeram muitas amizades duradouras, mantendo contato mesmo após as despedidas.
Para os dois, o intuito da viagem é, de fato, conhecer novas pessoas e aproveitar a aposentadoria de forma diferente. “Nosso objetivo é viver mais. Porque eu conheci pessoas que viajaram fugindo de problemas, mas acho que, quando a pessoa viaja desse jeito, a experiência vai ser péssima. Quando se vai no intuito de conhecer pessoas, de se divertir, qualquer coisa que acontece é ótimo”, ensina Marcelo.
*Estagiário sob a supervisão de Eduardo Pinho.
Como ter um motorhome
Atualmente, 626 motorhomes circulam pelo Distrito Federal. Para os que pensam em transformar o carro em uma casa sobre rodas, o Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) alerta: as modificações em um motorhome precisam seguir regras específicas de segurança. Segundo a Resolução nº 743/2018, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), qualquer transformação de veículo em motorhome deve ser precedida da emissão do Certificado de Segurança Veicular (CSV).
O documento é essencial para comprovar que o automóvel adaptado atende às exigências técnicas, como o limite de peso, dimensões e estabilidade, e que o interior não possui objetos soltos ou acessórios que representem risco aos ocupantes ou prejudiquem a visibilidade do motorista.
Primeiros passos
O primeiro passo é agendar uma inspeção técnica em um dos Núcleos de Vistorias e Inspeção Técnica (Nuvits) do Detran-DF, apresentando as notas fiscais de todas as peças e serviços realizados. Após a vistoria, as informações são encaminhadas ao Inmetro, que emite o certificado. Só então os dados são atualizados no Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo (CRLV).
O Detran também alerta que o estacionamento deve respeitar o espaço das vagas: não é permitido ultrapassar as demarcações ou ocupar mais de uma.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Ed Alves/CB/D.A Press











