Ministro da Segurança Pública no governo de Michel Temer e um dos subrelatores da Lei Antiterrorismo sancionada em 2016, Raul Jungmann lamenta que interesses eleitoreiros contaminem o debate sobre o enfrentamento às facções criminosas, particularmente de governadores de direita com pretensões de alçar voos mais altos. Mas critica igualmente os “democratas” de esquerda, que tratam a segurança pública como um problema social, quando, na verdade, é preciso considerar também as ações de confronto. Em meio ao grande desentendimento entre estados e a União no combate ao crime, Jungmann vê a população aplaudir operações que dizimam uma centena de pessoas, por se sentir abandonada pelo poder público. Nesta entrevista ao Correio, o ex-ministro considera fundamental avançar em proposições como a PEC da Segurança e o Projeto de Lei Antifacção.
O brasileiro está por conta e risco em relação à segurança pública?
Num país com a desigualdade do Brasil, a segurança pública está em primeiro lugar na cabeça das pessoas. Por quê? Porque existe um sentimento de abandono, de que ninguém cuida, de que ninguém resolve esse tipo de problema. E a verdade é que a política sempre fugiu desse problema. Agora, chegou a hora da verdade. Vamos ter que encarar e resolver isso.
O que há de mais importante no PL Antifacção enviado pelo Ministério da Justiça ao Congresso?
Esse projeto é necessário e muito bem-vindo. Primeiro, porque estabelece condições para que se faça o enfrentamento na esfera penal das milícias e do crime organizado — sobretudo aquele que domina territórios, como é o caso do Comando Vermelho (CV), do Primeiro Comando da Capital (PCC) e de tantos outros. São mais de 70 facções de base prisional, ou seja, surgiram dentro da penitenciária e continuam dando ordem de dentro do sistema. Sob esse aspecto, o projeto é muito bem-vindo, trazendo inovações como o perdimento dos bens ainda em fase de investigação, não só após o trânsito em julgado — isso é muito importante —; aumentando as penas; tratando da progressão; permitindo a infiltração de policiais; estabelecendo, também, penas conexas para armas, controle do território… Enfim, a lei antifacções é muito bem-vinda. Agora, está sendo desvirtuada por pressões e interesses políticos.
Qual sua avaliação sobre equiparar o narcotráfico ao terrorismo?
Fui um dos subrelatores da lei do antiterrorismo. Quero dizer que (equiparar narcotráfico e terrorismo) não faz nenhum sentido. Vou explicar a partir de três princípios. Primeiro: quando o crime ocupa um território, sequestra, fere ou mesmo mata, ele está fazendo a partir de um princípio, de uma lógica econômica. Ou seja, quando aquela facção está praticando esses delitos, não está pensando em derrubar o governo, não está pensando em mudar a ideologia, os princípios constitucionais do Brasil. Não está pensando, por exemplo, em que a gente mude a nossa religião, por assim dizer. Não tem nada a ver com a política, absolutamente nada.
E o terrorismo?
Cheguei a conhecer 64 definições de terrorismo. E nenhuma delas deixa de associar o terrorismo com a política. Todas são relacionadas à política. Quando há um ato terrorista, esse ato acontece por quê? Porque aquele grupo de terroristas quer dobrar o Estado brasileiro. E, para isso, aterroriza a população. Então, a relação é totalmente outra. Aqui não tem número, não tem cálculo, não tem dinheiro, não tem droga, não tem nada disso. Além disso, vai significar uma enorme confusão mexer na lei antiterrorismo que temos, que é de 2016.
Qual é o segundo equívoco que o senhor vê nessa proposta de narcoterrorismo?
Outro ponto: para a Polícia Federal (PF) entrar no caso, terá de pedir a autorização dos governadores de estado. Quer dizer: pretendem simplesmente tirar a autonomia da Polícia Federal em matéria que é federal? Ora, o terrorismo é sempre contra o Estado. É sempre contra a União. Então, sendo a Polícia Judiciária da União, a Polícia Federal, automaticamente, está incluída nesse caso. Agora, o governador dizer se ela pode ou não pode entrar, isso é um contrassenso absoluto.
E o terceiro ponto?
O terceiro ponto é o seguinte: essa transformação da legislação penal como terrorismo possibilita a intromissão de outros países aqui. Possibilita, inclusive, que sejam bloqueadas contas ou empresas lá fora, no exterior. Em suma, é um volume tão complexo de interrelações e de problemas que não faz nenhum sentido isso acontecer. Você quer sancionar? Quer ampliar a pena? Amplia. Quer maximizar a perda? O período de detenção? Você faz o que você quiser. Mas considerar terrorismo é um imenso contrassenso.
Qual a intenção de quem defende equiparar terrorismo e crime organizado?
Para mim, é óbvio que são interesses eleitorais. Claramente interesses eleitorais, envolvidos, sobretudo, por governadores, alguns deles candidatos ou pré-candidatos à Presidência da República. Eles têm interesse em obter, digamos, essa vitória e apresentar-se como tendo feito a defesa da população. Geralmente, são governadores à direita do espectro político. Por que isso acontece? Sobretudo porque democratas, esquerdas, liberais, até hoje não apresentaram uma alternativa que reúna a segurança pública e os direitos humanos. Na medida que a população apavorada vê o que aconteceu, por exemplo, no Rio de Janeiro, como algo voltado para a defesa dela, ela aplaude. E ela está certa. Ela aplaude independentemente da dimensão da mortandade, que é absurda — não precisava, nem deveria acontecer naquela escala. Mas o que ela vê ali? Vê uma defesa dela. Como a esquerda, liberais, democratas, não têm nada a apresentar e dizer: ‘Olha, aqui está um modelo diferente. Aqui está um modelo que combate. Aqui está um modelo que sobe na comunidade, que sobe na favela, seja onde for, mas que tem também respeito às normas legais. Tem respeito. Não é tiro, porrada e bomba’. A única coisa que fica claro para a população é que não há alternativa.
O governo federal tem alegado que uma alternativa de combate ao crime organizado seria, por exemplo, a Operação Carbono Oculto. Esse seria um dos caminhos ou não é suficiente?
É um bom caminho, porque os métodos de hoje estão muito avançados não só entre o crime organizado e o capital, mas, também, entre o crime e o Estado. Alcançou-se um nível de complexidade, de infiltração, de participação do crime organizado em todo o país — em empresas, em segmentos inteiros, como a gente viu no caso dos combustíveis, e também a participação em termos de partes do Estado que são capturadas pelo crime organizado. Acredito que aquela estratégia foi bem formulada e apresentou resultado, surpreendeu todo mundo, embora se imaginasse que era aquilo que estaria acontecendo na realidade.
Aumentar a pena tem algum impacto? A gente vê criminosos condenados a mais de 100 anos. Já têm uma pena muito alta e continuam praticando o crime.
Existem casos e casos. Têm casos em que, efetivamente, a pena chegou no limite. Em outros casos, não. O aumento da pena, mas particularmente a progressão da pena, tem potencial de reduzir (os crimes). Mas o que, de fato, muda? O que de fato muda é a diminuição da impunidade. Muito mais eficiente do que o aumento de pena é você, por exemplo, não ter apenas 20% dos homicídios devidamente esclarecidos no Brasil. É isso que faz com que aconteça o que estamos ainda vivendo no Brasil — apesar da queda que estamos vivendo desde a minha época em que passei pelo Ministério da Segurança Pública. Se você não reduz a impunidade, se você não aumenta a certeza da punição, se ela é algo muito precário, por assim dizer, então o aumento de pena não é uma grande questão. Mas já acho um avanço que setores da esquerda estejam aceitando que a questão da criminalidade não é apenas social. E que, sobretudo, é preciso dar uma resposta a essa criminalidade, porque ela também envolve direitos humanos.
Explique melhor, por favor.
Quando um morador da comunidade tem que deixar a porta aberta para que a criminalidade vá lá se esconder; quando um morador de comunidade tem que sair com a família e ir embora; quando ele tem filhos sequestrados, levados, por exemplo, para o narcotráfico — isso também é direitos humanos. E é fundamental fazer a defesa deles. Por isso que defendo, há muito tempo, que democratas, em geral, têm de ser menos teóricos, menos ligados, embora nunca desligados da questão dos direitos humanos. Mas é preciso enfrentar. Não é deixar só para a direita o tiro, a porrada e a bomba, que a população reconhece que nisso aí está sendo feita a defesa dela — quando, na verdade, sabemos que isso não acontece ou acontece parcialmente.
Falou-se muito sobre se a operação nos complexos do Alemão e da Penha foi estrategicamente preparada, com inteligência, com trabalho de investigação. O Projeto de Lei Antifacção trata, de alguma forma, de melhorar a investigação, a inteligência?
Temos um resultado muito concreto. Antes ou durante a ação, o governo do Rio de Janeiro divulgou que tinha como principais objetivos a captura dos líderes. Pergunto: algum deles foi preso? Não. Mas ainda onde é que está o “X” da questão? É você ver a população aplaudindo isso. Ela aplaude isso. Mas qual é o modelo alternativo apresentado para ela?
Por que é tão difícil solucionar a segurança pública no Brasil?
Venho estudando isso desde a Constituinte. Quando chega na Constituinte, nos debates que você tem sobre polícia e sobre também militares, você vai ver que a mudança é muito pouca. De modo geral, entre democratas e esquerdas, esses são temas dos quais querem distância. A verdade é essa: querem distância, por razões que fica para outro dia a gente explorar. Então, a grosso modo, democratas e esquerdas abraçam os direitos humanos, enquanto a direita abraça a segurança pública. O que preocupava os democratas em geral e a esquerda? Preocupava a questão da saúde, da educação, da previdência, da assistência e, claro, a questão da distribuição de renda e da economia. Militares e polícia são os dois grandes fracassos, por assim dizer, que temos no sentido de um aggiornamento desde a Constituinte para cá. E, mesmo assim, você não vê surgir um projeto que, realmente, traga mudanças relevantes.
E no governo Lula?
O governo Lula tem modificado a atitude em três momentos importantes. O primeiro momento é quando ele lança a PEC 18 (PEC da Segurança Pública). A PEC 18 é fundamental — fui ministro da Segurança, posso falar bastante sobre isso. É fundamental para a coordenação das ações entre União, estados e municípios a ser feita pelo governo federal. É simplesmente, diria assim, o Ovo de Colombo, se a gente pode assim chamar. Por quê? Porque hoje, por exemplo, o PCC está em 28 países — isso são dados do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público) de São Paulo. E faturam, só com drogas, mais de US$ 1 bilhão. E isso é responsável por 15%, 20% do faturamento deles. Olha onde é que nós estamos. Tenho dados, por exemplo, da inteligência em 2018, de que lá pelos anos 1990 o PCC começa com mil, 2 mil apenados. Quando você chega em 2018, estão exatamente com 13 mil. Hoje, são mais de 40 mil. Será que não estamos perdendo essa história? Será que essa sequência que estamos vendo aí de operações, o que de fato está dando certo em termos de ganho estrutural? Vocês podem me dizer o que acontece?
Como avalia essa dicotomia entre os estados e União? Ela já vinha ocorrendo antes mesmo do PL Antifacção e, inclusive, antes da PEC da Segurança. Como é possível estabelecer essa cooperação? Não tem como? A eleição vai sempre prevalecer?
O Brasil teve sete constituições. A primeira em 1824, a última em 1988. Em nenhuma delas — atenção: em nenhuma delas — o Poder Central, seja no Império, seja na República, teve atribuições em segurança pública. Não tem atribuição, não adianta procurar. Eu procurei. Você não vai encontrar. E não imagine que a Polícia Federal cuida de segurança pública. Não cuida. Isso sempre ficou com os estados. Por outro lado, você tem um crime que se nacionaliza e transnacionaliza, mas a função da Polícia Federal é cuidar de alguns ilícitos. Por exemplo: crime de repercussão nacional, crime interestadual — e assim por diante. E, mesmo assim, tem que pedir autorização ao Conselho Nacional de Justiça. Eu e a (então) procuradora Raquel Dodge tentamos trazer a competência do caso Marielle para a esfera federal. Não conseguimos. Agora, como é que os estados vão resolver um problema do PCC, que está em nada mais, nada menos, do que em 28 países? Como é que o estado da Paraíba, minha pequenina Paraíba, meu Pernambuco vai resolver uma coisa dessas? Não tem como.
O que precisa ser feito então?
É imperativo fazermos, aqui, o que tem no mundo afora. Tem polícia local, mas tem polícia nacional. É preciso haver coordenação nacional. Sem isso, não tem jogo. Porque não se compartilha informação, inteligência. Porque não se consegue fazer operações, a não ser na base da “brodagem”. Tem que ser uma coisa devidamente ordenada. Vejam o que aconteceu na Operação Carbono Oculto, em que nove organizações foram partícipes. E elas conseguiram se entender.
E ainda há o problema de os estados seguirem as diretrizes do poder central…
Fui ministro da Segurança. Se eu ligasse para um secretário de Segurança Pública para dizer que a prioridade seriam os casos de feminicídio, ele dizia: ‘Muito bem, seu ministro, perfeito’. Desligava e fazia o que queria. Porque eu não tinha nenhum poder sobre ele. Zero. Não existe poder.
Boa parte do sistema prisional está a cargo dos estados também.
A grande questão da violência brasileira é como o sistema funciona. O que fazem as polícias? Tiram bandido da rua. Esse é o papel delas. Aí, jogam os bandidos dentro de uma das 1.500 unidades prisionais que o Brasil tem. Chegando lá dentro, quem é que manda? Poder estadual? Ministério Público? Justiça? Quem manda dentro são, exatamente, os participantes da base criminal: Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Primeiro Comando do Capital… Veja só a loucura que você faz. Você está tirando bandido da rua e botando a serviço das gangues. Um dia eles vão sair, mas não saem mais como bandidos isolados. Saem como bandidos fazendo parte de uma gangue, tendo cobertura dela e, para ela, trabalhando. O sistema funciona assim. Essa é a máquina do demônio que faz com que a segurança pública do Brasil, hoje, seja funcional da violência, funcional do crime organizado e funcional do que estamos vivendo.
Tudo isso está sendo devidamente discutido no projeto que está no Congresso?
O governo Lula tem três aspectos que é importante ressaltar. Primeiro, a PEC 18. Sem ela, não tem jogo. Em segundo lugar, a operação de São Paulo (Carbono Oculto). Demonstrou capacidade de inteligência e integração entre organismos. Seria importantíssimo que isso pudesse se transformar em algo, em uma norma, em algo formal. Em terceiro lugar, essa lei Antifacção, que também é muito importante para que a gente possa enfrentar aqueles que dominam o território e aterrorizam as comunidades. Acho que isso aí é positivo. Agora, o problema é que estamos na véspera do ano eleitoral. No ano eleitoral, a contabilidade, a preocupação é eleitoral, é voto. Estamos, assim, em uma grande disputa entre quem pretende, tem projeto de disputar eleição em 2026. E isso, evidentemente, envenena todo o debate. Esperamos que haja bom senso e pensem no Brasil. Porque ele está precisando, está gritando.
Em relação à operação no Rio, muitos políticos têm dificuldade de expressar opinião porque podem até avaliar que foi mal-sucedida. Mas ficam com medo da reação da opinião pública, que é a favor. Como avalia isso?
Concordo em gênero, número e grau. Mas certas coisas, certos valores, você não pode abrir mão deles. O (ex-presidente) Fernando Henrique Cardoso dizia uma coisa que nunca esqueci. Falava assim: “Popularidade, você perde, você ganha. Credibilidade, você só perde uma vez”. Às vezes, a gente sai para apanhar, tem que apanhar. E precisa, infelizmente, enfrentar isso, para poder sair lá na frente com aquilo que considero fundamental como político: credibilidade.
Falta credibilidade nas políticas de segurança pública?
Nesse momento de pouca confiança da população na política, é fundamental a gente saber que tem horas que é preciso ir contra a maré, o consenso. Agora, é preciso também ter uma racionalidade. Existem momentos em que enfrentar bandido, armado, com fuzil na mão, infelizmente é uma resposta dura. E não são teorias nem boa vontade que vão resolver isso. Mas isso, de forma nenhuma, significa concordar com esse volume extraordinário de mortes no Rio de Janeiro.
É a favor de um Ministério da Segurança Pública?
Acho que o ministro (Ricardo) Lewandowski está fazendo um excelente trabalho. Não é uma questão de ministro. A questão, aqui, é de ter o Ministério da Segurança Pública. Não vejo nenhuma razão para não tê-lo. É uma necessidade colocada, suplicada, requerida pela população brasileira — e note, pela democracia. Democracia, às vezes, você precisa lembrar, precisa de ordem. O que a democracia nos dá? É uma ordem regulada, é uma ordem democrática. O que quer dizer? É uma ordem que todos consentem com ela. Não é impositivo, não é autoritário. Mas, sem sombra de dúvida, democracia é ordem regulada.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Minervino Júnior/CB











