A curadoria dos palácios presidenciais — Planalto e Alvorada — vem redesenhando o significado simbólico desses edifícios, aproximando o ícone modernista da arte contemporânea brasileira. Sob a direção de Rogério Carvalho, as edificações passam a se afirmar como “um território de diálogo entre tempos, linguagens e sensibilidades”, em suas palavras. A doação de 70 novas obras ao acervo reforça esse movimento, incorporando diversidade de linguagens, perspectivas e narrativas aos espaços do poder. No caso do Palácio do Planalto, um desafio se impôs, após os atos de vandalismo de 8 de janeiro de 2023, quando o espaço foi invadido e barbarizado.
Atuando no mundo das artes há 25 anos, Rogério Carvalho é formado em arquitetura e iniciou sua carreira como técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), integrando um trabalho conjunto com a Interpol e a Polícia Federal na busca por objetos tombados desaparecidos. “Ali, meu olhar começou a ser treinado. Eu precisava entrar em contato com obras e identificar se eram originais e se estavam sendo vendidas ilegalmente, sem que houvesse alarde, para não atrapalhar o trabalho dos agentes”, conta.
Como parte da curadoria dos palácios, Carvalho ingressou em 2007. Foi por meio da comissão de curadoria, instalada à época. O trabalho se estendeu até 2016, quando escolheu deixar a função e abrir sua própria galeria de arte, onde permaneceu até o período de transição do atual governo, de 2022 para 2023.
Reparação
Antes das novas aquisições, a última compra oficial de obras para o acervo dos Palácios Presidenciais havia ocorrido em 1991. “No início de 2023, tínhamos um acervo 80% masculino, branco, hétero e burguês. Dentro dessa perspectiva da necessidade de pluralidade, eu construo uma narrativa de reparação histórica que busca adequar o conjunto de obras”, explica Carvalho.
A partir disso, os palácios passam a ser habitados por mais obras de mulheres, indígenas, pessoas negras e artistas da comunidade LGBTQIAPN . Mas essa mudança teve um momento de virada importante: os ataques do 8 de Janeiro. Rogério Carvalho foi convocado ao Palácio do Planalto durante a invasão. “Eu me perguntava o tempo todo o que faria com que aquelas pessoas não se reconhecessem nas obras a ponto de destruí-las. A narrativa de reparação histórica surge aí de maneira muito forte”, relembra.
Das obras atingidas, 20 passaram por restauração no Palácio da Alvorada, em parceria entre a Presidência da República, o Iphan e a Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Mesmo com restaurações impecáveis, uma das peças carrega uma forma simbólica de memória do que sofreu. “O quadro de Di Cavalcanti foi perfurado em sete lugares e, na parte frontal, é imperceptível. Em seu verso, ainda é possível ver as marcas do dano. Deixamos assim, pois ele precisa ser lembrado, porém, sem se tornar protagonista”, destaca.
Além dele, uma obra foi mantida exatamente como ficou após o ataque: uma bandeira do Brasil hiper-realista, arrancada da parede, jogada ao chão e pisoteada para evitar que molhassem os pés no prédio alagado. “Ela está exposta da mesma maneira, no segundo andar. É um registro que reflete o entendimento daquele momento. Não podemos simplesmente passar por um evento como esse sem registro; é preciso que fique na memória e no palácio”, afirma.
Mais do que recompor paredes ou restaurar quadros, o novo projeto curatorial dos Palácios Presidenciais tornou-se um ato simbólico de correção de rumos. A proposta deixou de ser apenas estética e passou a ser ética: reescrever a narrativa visual do poder no Brasil. “O objetivo é dar espaço a identidades que antes não tinham visibilidade e refletir a pluralidade do povo brasileiro dentro do Palácio”, destaca.
A partir disso, as primeiras obras que representam o povo como um todo começam a integrar o acervo. O local onde ficava o histórico relógio trazido ao Brasil por Dom João VI — também danificado pelos atos de vandalismo em 8 de janeiro de 2023 — agora é ocupado por uma escultura entalhada da República de Moçambique. “Temos a primeira obra de uma artista trans, a primeira de um artista quilombola no Palácio do Planalto. No Alvorada, temos duas obras de Daiara Tukano, artista indígena. Ou seja, comunidades que nunca foram contempladas passam a ter acesso e a se enxergar dentro do Palácio por meio dessas obras”, celebrou.
Contemporaneidade
Ao falar sobre a concepção de Brasília e dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho destaca que a origem do projeto já carregava a ideia de pluralidade. “Quando Niemeyer projetou os prédios de Brasília, pensou também no plural. Ele era um humanista perfeito”, avalia. Essa visão, segundo ele, expressa-se simbolicamente em obras como a Catedral Metropolitana, idealizada inicialmente como um espaço ecumênico: “Sem fechamento, com possibilidade de qualquer pessoa se aproximar. Quando você incorpora essa pluralidade ao prédio projetado por ele, tenho certeza de que ele está aplaudindo de onde estiver”, diz.
Carvalho lembra que, nos primeiros anos da capital, a formação do acervo e do mobiliário dos palácios ocorreu dentro das limitações do período. “As primeiras obras que entraram no Palácio da Alvorada foram doadas por Assis Chateaubriand — 21 obras doadas ao Juscelino”, relata.
Muitos dos móveis produzidos em Brasília, apesar do desenho arrojado, não resistiram ao tempo, devido à fragilidade dos materiais. A grande virada nesse processo ocorreu em 2009, durante uma restauração em que fez questão de priorizar o design nacional. “De maneira nenhuma colocaremos móveis suecos ou americanos. Vamos colocar móveis brasileiros”, relembra.
A partir daí, foi criada uma oficina de restauração que recuperou 946 móveis, todos retirados do descarte de órgãos públicos. “Tudo isso foi restaurado por 80 adolescentes em situação de risco, do Distrito Federal”, assinala.
Na curadoria atual, tapetes persas foram retirados das áreas públicas. Em seu lugar, peças de sisal feitas por cooperativas brasileiras e grandes tapetes inspirados em um desenho original de Niemeyer. “É assim que seguimos: tudo pela brasilidade — artistas brasileiros em destaque, o melhor do que temos concentrado aqui”, conclui.
Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Minervino Júnior/CB











