Democracia brasileira mostra resiliência em meio à fricção entre Poderes

Tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 não prosperou porque não houve adesão do Congresso, chancela do Judiciário e apoio das Forças Armadas, apesar dos atritos entre Executivo, Legislativo e Judiciário

Sem grandes ilusões, o Brasil irá às urnas em 2026, provavelmente polarizado entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com sua “economia do afeto”, como diria o historiador Alberto Aggio (A Construção da Democracia no Brasil 1985-2025, editora Annablume e Fundação Astrojildo Pereira-FAP), e o candidato apoiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que está convalescendo de uma cirurgia e deve voltar a cumprir pena em regime fechado.

Segundo as pesquisas, a maioria dos eleitores está com cansaço, desconfiança e tédio, mas não deixará de votar. Isso não é pouco: a democracia brasileira hoje não promete felicidade cívica, promete apenas evitar o pior pelo simples fato de que existe. Essa polarização parece inexorável, mesmo que as forças de centro-direita consigam remover a candidatura do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e/ou lançar um candidato de direita que empolgue os eleitores.

Talvez seja pouco para entusiasmar; no mundo em que vivemos, porém, é muito para preservar. Diante desse cenário, nos resta compreender melhor como foi que chegamos até aqui. O ano de 2025 nos deixa em estado de perplexidade. De um lado, o regime democrático não colapsou, graças à Constituição de 1988, apesar de ter sido submetido a choques sucessivos que, em outros momentos de nossa história, teriam resultado em golpes de Estado. De outro, há evidente mal-estar social, fadiga eleitoral e descrença na política como espaço de participação da sociedade e solução dos problemas do país.

Esse paradoxo se explica, também, pelo funcionamento imperfeito, conflitivo e frequentemente disfuncional do sistema de freios e contrapesos entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Um sistema que não produziu harmonia neste ano, mas fricção renitente. Essa fricção é visível a olho nu, mas impediu a captura integral do Estado por um único ator, partido, facção ou liderança carismática. A democracia brasileira não se salvou apesar do conflito entre os Poderes; por ironia, salvou-se por causa dele. Os principais fatos ocorridos no decorrer deste ano mostram isso.

A tentativa de ruptura institucional associada ao 8 de Janeiro não prosperou porque as instituições não se alinharam. Não houve adesão do Congresso, não houve chancela do Judiciário, não houve apoio formal das Forças Armadas enquanto instituição. A democracia resistiu porque o sistema não funcionou em bloco, mas em desacordo, por todo o governo Bolsonaro. E graças a isso, depois, os envolvidos no golpe foram processados, condenados e já estão cumprindo pena.

Nesse aspecto, a condenação de oficiais de alta patente por crimes contra a ordem democrática é um marco histórico. Pela primeira vez desde a redemocratização, rompeu-se a lógica da tutela militar informal sobre a política. Sob supervisão do Supremo Tribunal Federal (STF), com amplo direito de defesa, o processo fortaleceu o Estado democrático.

Outro exemplo: apesar dos ataques às urnas eletrônicas, o sistema eleitoral permaneceu íntegro e confiável. Não houve mudança de calendário eleitoral, mas efetiva a possibilidade de alternância de poder, que se mantém. A democracia brasileira continua sendo sustentada pelo voto popular, ainda que o entusiasmo com as eleições tenha se dissipado.

Na berlinda neste final do ano, por causa do escândalo envolvendo o Banco Master, o STF não foi capturado nem pelo Executivo nem pelo Legislativo. Apesar de todos os excessos e personalismos, suas decisões impopulares foram mantidas, pressões políticas foram enfrentadas e o desgaste de reputações não foi maior do que a resiliência institucional.

Igualmente contraditório foi o papel do Congresso, que conseguiu impor sua agenda e fazer com que o Executivo deixasse de ser o único polo de gravidade do sistema. Um Congresso poderoso — que avançou sobre o Orçamento da União e se blindou contra a renovação, com as emendas impositivas e os fundos eleitoral e partidário — é um problema. Entretanto, um Congresso irrelevante seria muito pior.

O mal-estar

Agora, o maior problema é que essa fricção, que explica o equilíbrio desarmonioso entre os Poderes, pode ser tornar um fator de risco sistêmico da ordem democrática, que somente sobreviveu pela resiliência das suas instituições, principalmente o Supremo e o Congresso, que agora estão sob desgaste “desde dentro”. Vem daí o grande mal-estar da sociedade com a política brasileira. Se a resiliência explica a sobrevivência do regime, a fricção explica esse mal-estar. Alguma coisa está fora da ordem: presidentes recentes, sobretudo Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, tiveram quase metade de seus vetos derrubados, contra índices residuais em governos anteriores, como os de Fernando Henrique Cardoso.

Não se trata apenas de presidentes minoritários, houve uma mudança estrutural no equilíbrio de forças, com o Legislativo institucionalizando a ampliação momentânea de poder que obteve em momentos de crise. Há uma crise de liderança política, fratura do tecido social e falta de consenso político amplo sobre o caminho a seguir pelo país.

O Executivo governa sem programa consistente, sustentado por alianças fragmentadas e negociações ad hoc. O presidente Lula é forte contra a extrema-direita e fraco como articulador de consensos estruturantes, o que aprofunda a dependência do Executivo ao fisiologismo parlamentar.

Outro fator de fricção permanente é o exagerado protagonismo do STF na cena política. A Corte salvaguardou a ordem constitucional, no entanto gerou um efeito colateral: a transferência recorrente de decisões políticas para o foro judicial. Isso enfraquece a representação, vicia o processo político e alimenta a narrativa antipolítica que corrói o sistema democrático a partir da descrença nas suas instituições.

As eleições

A verdade é que o bolsonarismo permanece como força política ativa, é um fenômeno do nosso tempo, que reflete um ciclo longo de fortalecimento da extrema-direita no mundo, sobretudo após a volta do presidente Donald Trump à Casa Branca. Mesmo com Jair Bolsonaro condenado e preso, o campo político que lidera segue mobilizado, cria fatos, tensiona instituições e mantém viva a lógica plebiscitária do “inimigo interno”. A democracia resiste, mas paga o preço da radicalização permanente do “nós contra eles”, retroalimentado pela “cultura de rechaço” do PT, que cresce nesses confrontos, como assinala Aggio em sua síntese sobre os 40 anos de redemocratização.

Entretanto, é inegável que a maioria do eleitorado derivou à direita nas questões ambiental, distributiva e ética. Mesmo com a leviandade com que se aprovam emendas constitucionais no Congresso, a Constituição de 1988 permanece progressista. Temos uma democracia de massas. Esse descompasso gera um desconforto constitucional. Por isso, estamos entrando num novo processo eleitoral, com uma ordem política exausta e simbolicamente empobrecida, apesar de sua estratégica resiliência como sistema.

Será difícil o eleitor entrar em 2026 com entusiasmo e convicção, pois é movido por um medo binário, de retorno do autoritarismo e do colapso institucional. Esse binarismo se retroalimenta e é paralisante. Cada movimento de um dos polos legitima o outro. Programas importam menos que narrativas. A política deixa de ser escolha e passa a ser defesa. “E la nave va”. Ainda assim, o sistema aguenta.

Por Resenha de Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Ricardo Stuckert / PR