Cursos pré-vestibulares gratuitos no DF reúnem aprendizado e solidariedade

Nos cursinhos populares, jovens encontram mais do que preparação para o vestibular mas também apoio, esperança e a certeza de que a educação pode ser uma ponte para um futuro melhor

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A estudante brasiliense Ayeska Machado Alves, de 25 anos, iniciou, neste ano, um mestrado em políticas públicas, na Universidade Nacional de Singapura, com bolsa integral da faculdade, além de ajuda de custo complementar da Fundação Lemann. O percurso para chegar tão longe começou em um cursinho popular que fazia, gratuitamente, na capital do País.

“Sou uma mulher negra, filha de mãe solteira, da Ceilândia”. Ela estudou na Universidade de Brasília e fez intercâmbio fora do país. Ela trabalhou em grandes empresas aqui no Brasil, o que incluiu trabalharna Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ, Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit) e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em Brasília, ela estudou de graça no Galt Vestibulares, uma iniciativa com mais de nove anos e história.

Apoio e esperança

Da periferia do Distrito Federal ao Plano Piloto de Brasília, entre aulões de revisão e simulados, florescem no coração do Planalto Central ambições que ousam atravessar fronteiras. Nos cursinhos populares, jovens encontram mais do que preparação para o vestibular mas também apoio, esperança e a certeza de que a educação pode ser uma ponte para um futuro melhor.

Por trás dessa transformação, estão também os professores e voluntários que, movidos pela crença na educação popular, dedicam suas vidas à construção de uma pedagogia mais justa e acessível para todos. Na sala de aula, há histórias de superação e a cultura de solidariedade que as sustenta, revelando os rostos e as vozes de quem transforma sonhos em realidade.

Ideais universitários

O Galt Vestibulares tem nove anos de atuação e mais de 1 mil alunos aprovados em vestibulares. Eles se denominam o maior cursinho voluntário de Brasília.

“O Galt foi criado por quatro alunos da Universidade de Brasília [em 2015] que se conheceram e tinham a intenção de montar um cursinho para ajudar alunos que não têm condições de pagar por um preparatório para o vestibular e Enem”, explica a atual presidente organizacional do Galt, Aline Barbosa, 38 anos.

Ela explica que o cursinho foi criado com esse intuito, de auxiliar alunos que estudaram o ensino médio na rede pública de ensino, ou foram bolsistas integrais na rede privada.

Aulas presenciais

Aline é sargento do Corpo de Bombeiros Militar do DF e, no dia da entrevista, ela tinha voltado de um plantão no Parque Nacional de Brasília, que teve mais da metade da área comprometida por incêndios.

O cursinho tem, em média, 115 voluntários ativos. Há um perfil? “Não”, ela responde prontamente. “Vai desde o estudante universitário até o servidor público que já está do meio para o final da sua carreira. Então a gente tem voluntários que  trabalham no Galt com 19 anos, como temos voluntários com 50 anos de idade.”

Aline aponta que parcerias com instituições cedem semanalmente o espaço físico para as aulas presenciais. Eles mantêm, também, parcerias com cursinhos pré-vestibulares online, como a FISIQUEI e a Meta MED, garantindo acesso gratuito aos conteúdos destas plataformas para os alunos do cursinho.

Sem dinheiro

Aline explica que o Galt se sustenta por meio da inscrição do Vestibulinho, que é o processo seletivo que o candidato faz para ver se ele vai ser escolhido para entrar na turma do Galt. “O candidato paga uma taxa de R$ 15, e nós utilizamos esse valor para custear as despesas ao longo da gestão. E, pontualmente, nós fazemos campanhas de doação tanto interna, quanto externa”,

A ideia é ampliar as turmas e a quantidade de alunos a serem atendidos de forma presencial no Galt. “Só que a gente não tem voluntários o suficiente para poder atender essa demanda”.

“Só que a gente não tem voluntários o suficiente para poder atender essa demanda”.

Ela também explica que existem outros obstáculos. Para o ensino online, o acesso dos alunos a uma internet de qualidade é o maior desafio. Muitas vezes, os estudantes não têm acesso a uma conexão de internet no dia a dia, e, quando o têm, é geralmente de forma instável. 

Em qualquer um dos casos, recursos humanos têm sido a principal dificuldade para o cursinho. “Conseguir voluntários interessados em doar seu tempo para o Galt”. Isso é o que Aline define como maior impedimento para expansão das atividades do projeto hoje.

“A gente perde alguns professores ao longo do semestre porque as pessoas assumem outros compromissos. A gente acaba esbarrando em alguns problemas ao longo do processo de perder professores ou de não ter professores para poder oferecer todas as matérias pros alunos.”

Para além das estatísticas de alunos atendidos por semestre, ou até mesmo de alunos aprovados, estão histórias reais de transformação de vidas.  

“Eu estudei a vida inteira em escola pública”

Ayeska, que está em Singapura, explica que descobriu o cursinho em um momento de dificuldades, quando cursava turismo.

“Era um desafio muito complicado porque eu precisaria passar no vestibular. Para mim parecia algo muito complicado com essa nova concorrência ter que voltar a estudar esse conteúdo de vestibular, mesmo porque eu já tava ali do segundo para o terceiro semestre de turismo. É um outro público, […] e eu não teria essa condição financeira de pagar um cursinho.”

As dificuldades, aliás, iam além do conteúdo das provas e da concorrência. “Meus pais estavam separados e minha mãe tava desempregada. Eu ainda não tinha recebido o auxílio financeiro da UnB, e eu não tava com condição de me manter na UnB o dia inteiro sem trabalhar”.

É neste cenário então, ela conta, que o Galt Vestibulares entrou. Ayeska relata sobre seu tempo no cursinho com um tom de nostalgia e carinho, elogiando o projeto para além do aspecto da gratuidade.

“Eu acho que o interessante do Galt é proporcionar uma rede de apoio mais estruturada. Então eu não estava sozinha nessa jornada e também tinha esse valor social de ser gratuito e te dar outros valores de comunidade.”

Outro aspecto do cursinho que Ayeska elogia é o apoio psicossocial. Entre sessões individuais, sessões em grupo e espaços para orientação vocacional, ela ressalta a importância deste apoio psicológico em sua jornada pessoal. “Naquela época foi muito importante para mim esse apoio profissional, porque em meio a tantos outros problemas, você também consegue não focar somente no educacional, mas também alguns problemas mais pessoais.”

O que conecta as histórias de Aline e Ayeska não é somente este vínculo da estudante com o cursinho durante sua formação. Em 2023, pouco mais de 2 anos após sua graduação, Ayeska retornou ao Galt, desta vez como voluntária. A questiono sobre o que haveria motivado essa decisão.

“O cursinho me deu uma base de apoio muito boa, inclusive motivacional para continuar estudando, de continuar tentando, mas também de amizades e de não estar sozinha”. Ela avalia que a estrutura para as aulas eram adequadas. “O Galt me ajudou muito em diversas fatores, também, como pessoa”.

Para tentar devolver um pouco do que recebeu gratuitamente, a estudante foi voluntária no projeto Inglês na Estrutural, uma OnG que busca levar o ensino da lingua inglesa para crianças e adolescentes moradoras da Cidade Estrutural, no DF.

“Sempre com essa noção de que eu recebi um dia na minha vida, gratuitamente, mudou totalmente a pessoa que eu sou, as oportunidades que eu tenho e eu tenho esse senso de responsabilidade de tentar devolver nem que seja um pouquinho do que eu ganhei.”

Pedagoginga

Outro cursinho disponível está em Sobradinho. Fundado e organizado pelo universitário Filipe Davi, 27 anos, estudante de pedagogia na Universidade de Brasília, o Pedagoginga também oferece vagas gratuitas.

“Essa presença negra e periférica dentro da Universidade não era tão representativa. Foi bem doloroso esse processo”, afirma. A partir dessa experiência, e com o apoio de amigos também moradores de Sobradinho II, em 2018 Filipe começou a idealizar o que um dia se tornaria o Pedagoginga, cursinho voluntário e projeto de cultura popular.

O projeto nasceu numa sala de uma igreja em Sobradinho II, onde o próprio Filipe morava de favor na época, organizada por eles próprios para esse fim. No início, não nasce também como cursinho popular, ou sequer com pretensão de ser um projeto social.

Grupo

“Eu tinha essa visão de criar um espaço educacional, um espaço de incentivo. Só era normal para mim, coisa da minha comunidade ali: a gente fazer coisas pensando no outro e querendo se ajudar, querendo se fortalecer”, afirma o fundador do projeto.

Filipe recebeu a recomendação de uma amiga para a leitura do livro “Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem”, do pesquisador em Educação e escritor Allan da Rosa.

Em suas mais de 200 páginas, há não somente o relato de sua experiência como educador popular autônomo nas periferias de São Paulo, como também o desenvolvimento do que o autor denomina “uma nova proposta pedagógica; nova, porém trançada a estéticas e fundamentos ancestrais, o que implica a autonomia de educadores e estudantes, bem como o compromisso genuíno com a cultura afro-brasileira.”

Com nome, proposta e propósito definidos, o Pedagoginga se formou então a partir de conexões com, como o estudante conta.

“Outras pessoas que também tinham esse ativismo, que já tinham paixão por causas sociais, que tinham interesse em também devolver para a comunidade assim, para suas quebradas, enfim, para as periferias”

Hoje, a aula ocorre numa sala de aula em Sobradinho II, no Centro de Ensino Médio 4. As aulas acontecem no sábado, na parte da manhã. “Às vezes, a gente se organiza ali no grupo, um leva um arroz, outro leva um feijão, a gente se junta ali, faz um almoço. Fazemos atividades culturais e também de atendimento psicossocial.”

Ele explica que hoje o Pedagoginga atua em duas frentes, uma educativa e outra institucional. No âmbito institucional, Filipe menciona parcerias com o poder público e entidades privadas, mas reforça a atuação cultural do projeto.

“A gente realiza eventos sociais, eventos culturais, fazendo parcerias com as entidades também ali de Sobradinho II, da Ceilândia, enfim de outras regiões também do DF, né, para além de Sobradinho. E esses eventos, eles são para a promoção da cultura, do lazer, né, da arte, educação também.”

“A gente não quer dar apenas a oportunidade de que esses estudantes acessem a faculdade, o ensino superior, e isso diga para eles se eles tiveram sucesso ou não na vida”, explica Filipe explica.

Ele tem o mesmo sorriso sobre o resultados. “Uma moça me procurou. Ela disse que, por causa do projeto, estava fazendo pedagogia na Universidade Federal de Goiás.”

Ele me explica então que essa ex-aluna teria feito parte da primeira turma do Pedagoginga, em 2019, que tinha apenas 6 alunos. Com a pandemia da COVID-19, teria acontecido um distanciamento e eles não tiveram mais notícias desses alunos, até o momento relatado, em setembro de 2024. Hoje o projeto tem 30 alunos

Organização da educação popular

O Pedagoginga e o Galt Vestibulares não são os únicos exemplos de cursinhos populares no Distrito Federal e região. Percebendo esse movimento cada vez mais presente de solidariedade em prol de uma educação gratuita, popular e de qualidade, foi que Vinicius Machado, 27 anos, graduado em Geografia pela Universidade de Brasília, criou a Rede de Cursinhos Populares do Distrito Federal e Entorno.

Ele me explica sobre a motivação por trás da organização. “Eu vi muitos projetos semelhantes, com intuitos semelhantes, com objetivos muito próximos, que não dialogavam, não conversavam, e isso demonstrava para mim uma fragilidade nossa enquanto sociedade civil. Então a Rede vem com esse objetivo de conectar esses cursinhos”

Hoje há duas frentes para o trabalho do projeto: integração e cooperação, e advocacia. No âmbito da integração, a Rede proporciona reuniões periódicas entre os cursinhos populares do Distrito Federal, hoje 8 que são membros deste grupo, para que ocorra uma troca de experiências e propostas.

Na advocacia, o objetivo é abrir um diálogo com a sociedade civil, com os poderes público e privado, para não somente criar mais oportunidades para esses cursinhos, mas também para integrar cada vez mais essas iniciativas ao dia-a-dia da população.

É neste contexto de cooperação solidária que floresce a educação popular brasiliense. Aproveito o momento de conversa com Vinicius e seus anos de experiência como educador popular, e peço para que ele defina o que é este termo que tanto reforçamos na matéria. O que seria educação popular, exatamente?

“A gente não busca por si só educar conteúdos que são programáticos, mas a gente busca ampliar o exercício da cidadania”

Para ele, há uma relação direta dessa educação com a solidariedade e o voluntariado. “Quando a gente vai conhecer um movimento de educação popular, e a gente vai identificando essas pessoas, são pessoas que têm uma característica de acreditar em muito no papel transformador delas”

Por Jornal de Brasília

Foto: Divulgação / Reprodução Jornal de Brasília