Especialistas ouvidos pelo Correio avaliam o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub), apresentado pelo Governo do Distrito Federal (GDF) à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), cobram mais discussões sobre a proposta para evitar a descaracterização da cidade.
O plano reúne toda a legislação urbanística do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB), tombado nas instâncias distrital e federal e inscrito como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Ele abrange as regiões do Plano Piloto, Cruzeiro, Vila Planalto, Candangolândia, Sudoeste/Octogonal e Setor de Indústrias Gráficas (SIG), incluindo o Parque Nacional de Brasília e o espelho d’água do Lago Paranoá.
A proposta é resultado de diálogo entre representantes da sociedade civil, governo, setor produtivo e entidades de classe. O texto foi endossado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e aprovado pelo Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do DF (Conplan). No entanto, entidades e especialistas no assunto assinalam a ausência de instrumentos que, de fato, reforcem a preservação do patrimônio de Brasília no documento.
“O PPCub (apresentado) é mais um plano de desenvolvimento do que de preservação. Faltam instrumentos de preservação no plano de preservação”, enfatiza Luiz Eduardo Sarmento, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) do DF. O arquiteto também integrou a primeira equipe a trabalhar na elaboração do plano, liderada pela arquiteta Briane Bicca (1946-2018), há 10 anos. “A confecção do plano não foi um processo linear. Houve várias mudanças no plano e nas equipes de elaboração. Esse PPCub não é resultado do acúmulo desses anos todos de debate. Ele é retrato deste momento, deste governo”, opina Sarmento.
Luiz explica que o documento destaca as edificações de cada um dos setores do CUB que são de interesse de preservação, por suas qualidades arquitetônicas e históricas e por sua importância no conjunto urbano tombado. No Setor Comercial Sul, por exemplo, são elencados os edifícios Morro Vermelho, Camargo Corrêa, Oscar Niemeyer e Denasa. Sem os instrumentos que garantam a preservação, os edifícios podem ser reformados, mutilados ou até mesmo demolidos — salvo os pouquíssimos que são tombados, como os monumentos do Oscar Niemeyer, de acordo com Luiz Sarmento.
“Há uma década, a grande expectativa era de que o plano resolvesse o problema das reformas que descaracterizam a arquitetura moderna de Brasília. Isso não está ocorrendo agora”, lamenta o arquiteto, que lembra que Brasília é destaque mundial e um símbolo não apenas da qualidade do urbanismo e da arquitetura moderna brasileira, mas, principalmente, da “capacidade de fazer” do povo brasileiro.
“Esta cidade foi construída graças aos esforços de muitas e de muitos. Há muito trabalho e inteligência materializado no Conjunto Urbano Tombado. É nosso dever proteger, além do desenho urbano, a arquitetura modernista da cidade. As futuras gerações vão nos agradecer. Não há conjunto urbano preservado sem arquitetura preservada”, avalia Luiz Sarmento.
Conservação
José Leme Galvão Júnior, superintendente aposentado do Iphan, diz que não reconhece no projeto um plano de preservação. “É, no máximo, um plano diretor setorial. A preservação é citada no início, no primeiro capítulo, mas o documento só regulamenta intervenções. Se o conjunto urbanístico está tombado, tudo está protegido. Então como faz para conservar? A falha é na promoção da conservação”, observa.
“E se continuar a falta de controle na conservação do patrimônio de Brasília, podemos chegar ao limite e perder o título de Patrimônio da Humanidade e sermos desqualificados, também, no plano federal, eventualmente”, alerta Galvão Júnior.
O arquiteto ajudou na elaboração de um texto divulgado, no início do mês, pelo Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Brasileiro, composto por 26 entidades nacionais da sociedade nacional, abordando o assunto. A publicação destaca que na ausência de um verdadeiro Conselho Gestor do Conjunto Urbano de Brasília que de fato elaborasse o plano e de uma “verdadeira unidade institucional” que o articulasse, “insistiu-se” na elaboração de um plano conduzido exclusivamente no seio da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh).
Por ser conduzido apenas pela Seduh, “(O PPCubb apresentado) é resultado da elaboração de um Projeto de Lei Complementar (PLC) híbrido, que mistura elementos de um Plano Diretor de Ordenamento Territorial àqueles que deveriam ser realmente atinentes à preservação de bens culturais inscritos no Conjunto Urbano de Brasília. Tal contradição quanto à definição da matéria resulta num texto eivado de inconsistências conceituais, carente de instrumentos de preservação específicos, que acaba por não prover nosso patrimônio de uma verdadeira política ativa que inclua sua gestão, sua conservação e seu eventual restauro”, ressalta o texto do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Brasileiro.
Atraso
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Flósculo lembra que o plano chega com 37 anos de atraso. “Era para ter sido elaborado desde 1987, quando Brasília foi consagrada Patrimônio da Humanidade (pela Unesco)”, destaca o docente, que também aponta que a Lei Orgânica do Distrito Federal, de 1993, estabelece prioridade para a construção do PPCub, diferenciando-o da Lei de Uso do Solo (Luos), do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDot) e do Plano de Desenvolvimento Local (PDL).
Uma das críticas de Flósculo ao plano apresentado é o parcelamento do solo no Eixo Monumental, na região da Catedral Militar Rainha da Paz. Os lotes, de acordo com o professor, serão destinados a eventos e restaurantes, a exemplo do Complexo do Estádio Mané Garrincha. As cinco edificações previstas na região, de acordo com o professor, tirarão a limpeza visual que cria um ambiente de respeito e de anticlímax criado por Lucio Costa.
“É um plano péssimo, porque é feito sem a menor avaliação. É um PPCub que tem os mesmos defeitos apontados quando houve uma primeira versão, nos anos 1990, e nas versões que vieram da primeira década deste século”, avalia Frederico Flósculo, que também vê o plano como uma ameaça ao título de Patrimônio da Humanidade.
Conselho Comunitário
O Conselho Comunitário da Asa Sul (CCAS) também não está satisfeito com o resultado final do PPCub, apresentado pelo GDF. Em nota, a entidade aponta pressões dos setores imobiliário e de construção civil, ao longo dos últimos anos, para aproveitar a oportunidade e flexibilizar as legislações e normas que regem o tombamento da cidade. “Diversos enxertos e brechas colocam em risco a essência do plano urbanístico da cidade, consequência óbvia de se confiar tal tarefa à Secretaria de Desenvolvimento e Habitação, cuja finalidade é justamente o oposto da preservação e do tombamento”, critica a nota.
A entidade também denuncia uma suposta falta de menção à comunidade e aos cidadãos que vivem e trabalham no Conjunto Urbanístico de Brasília, o que levantaria questões sobre a transparência e a inclusão no processo de formulação do projeto de lei complementar. “A entrega do documento ao presidente da Câmara (Legislativa) e a apresentação aos deputados distritais e entidades empresariais sugerem uma priorização dos interesses políticos e econômicos sobre os interesses sociais e ambientais, que podem estar em jogo nesse plano de preservação urbana”, reclama a entidade.
A presidente da CCAS, Patrícia Carvalho, afirma que o conselho participou apenas de duas audiências públicas, uma em novembro de 2022 e outra em novembro de 2023. Na primeira ocasião, Patrícia entregou aos representantes do GDF um documento com questionamentos da comunidade representada pelo conselho a respeito do PPCub. “Já em novembro de 2023, fizemos perguntas diretamente à mesa da audiência, que nos prometeu que obteríamos as respostas depois. Não fomos respondidos em nenhuma das vezes”, relata Patrícia.
Seduh
A reportagem levou os questionamentos dos especialistas para o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), Marcelo Vaz. Ele explica que o PPCub trabalha com três vieses principais: preservação; norma de uso e ocupação do solo; e planos, programas, e projetos, que são os planos de desenvolvimento.
Vaz destaca que a preservação em questão está relacionada ao Conjunto Urbanístico de Brasília, e não das edificações. “O plano indica os bens que podem ser tombadas. A partir daí, o processo de tombamento é que define como aquele bem tem que ser preservado. O PPCub, em si, trata da preservação do conjunto urbanístico de Brasília como um todo”, sustenta o secretário.
Sobre o loteamento de terras no Eixo Monumental, na região da Catedral Rainha da Paz, ele esclarece que a proposta só permite o parcelamento para a criação de lotes, não define exatamente o que vai ser feito ou não na área. “Isso é um projeto posterior, que pode determinar quais lotes e de que formas serão parcelados e o que pode ser feito em cada lote. Tudo será objeto de um projeto, que será aprovado e analisado pela Seduh e pelo Iphan”, informa Vaz.
O secretário também falou sobre a ocupação habitacional do Setor Comercial Sul, ponto que tem gerado bastante discussão em diferentes setores da sociedade civil e da esfera política. Ele explica que aspectos polêmicos, como esse, que poderiam causar algum tipo de discussão “mais áspera” com a Câmara Legislativa e atrapalhar o andamento da aprovação do projeto, foram incluídos na parte de planos de desenvolvimento.
“O PPCub dá um indicativo de que esse tema tem que ser trabalhado e ser objeto de um estudo específico, que pode abordar todo um contexto, além da inclusão do residencial, assim como de que forma que esse uso tem que ser inserido e o que é preciso fazer na redondeza do SCS para que tenha a função habitacional”, detalha.
O projeto de lei complementar do PPCub foi recebido pela CLDF, mas ainda deve passar pelo crivo das comissões de Assuntos Fundiários (CAF); de Desenvolvimento Econômico Sustentável, Ciência, Tecnologia, Meio Ambiente e Turismo (CDESCTMAT); de Economia, Orçamento e Finanças (CEOF) e de Constituição e Justiça (CCJ), antes de seguir para o plenário. Na Casa, os deputados podem propor modificações no texto, menos na definição de parâmetros do uso de ocupação do solo, que é de competência do Poder Executivo. Um exemplo, de acordo com Marcelo Vaz, seria a altura máxima de prédios em determinadas localidades.
Por Naum Giló do Correio Braziliense
Foto: Kayo Magalhães/CB / Reprodução Correio Braziliense