Um mundo mais perigoso, uma agenda mais sobrecarregada, maior presença da tecnologia e das redes sociais na vida das crianças refletem diretamente nos estímulos e brincadeiras experenciadas por elas. É a análise da psicóloga cognitiva e comportamental Emily Verde, que cita ainda fatores sociais e culturais como determinantes na mudança de comportamento e mentalidade dos pais que educam os filhos nos dias de hoje em comparação aos que tiveram filhos nas décadas de 1980 e 1990.
Os desafios vividos pelos próprios pais interferem diretamente na criação dos filhos. “Muitas famílias que enfrentam agendas agitadas, com pais trabalhando longas horas, precisam envolver as crianças em atividades extracurriculares e ainda assim manter o contato com seus filhos e o controle do ambiente onde estão inseridos”, analisa a psicóloga Emily Verde.
Florisvaldo Bispo, 30 anos, morador do Riacho Fundo I, tenta estimular as atividades do filho Arthur Maia, 8, sem privá-lo dos seus interesses. “Eu tenho receio de que ele brinque fora de casa sem supervisão. Até pela inocência que percebo no Arthur, de não enxergar maldade nas pessoas. Prefiro que ele se divirta em lugares fechados onde ninguém poderia fazer algo contra meu filho”, relata o pai.
Apesar disso, Florisvaldo mantém a liberdade do garoto de brincar em quadras de futebol, com os amigos — jogar bola tem sido a atividade que ele mais gosta. Além do estímulo às brincadeiras tradicionais, como pique-esconde. O pai ainda refletiu que há mudanças regionais quanto às brincadeiras de rua. “Eu cresci em Ceilândia, onde havia esse costume da criançada estar no meio da rua. Mas, acredito que, por morarmos no Riacho Fundo I, esse hábito não é tão frequente. Por isso, meu filho acaba passando mais tempo em casa do que fora”, conta.
A professora Maria Cecília Avari, 66, tem dois filhos que viveram a infância entre as décadas de 1980 e 1990 e observa uma grande diferença entre a forma como ela criava os rebentos, à época, e a maneira como ela vê o neto João, 7, ser educado nos dias de hoje. “Tenho dois filhos, a Simone de 39 e o Rafael de 41 anos. Na época, eu via as crianças interagindo mais umas com as outras. Elas liam mais também. Meus filhos liam muitos livros, almanaques e gibis. Acredito também que a liberdade que eles tinham de brincarem de forma mais livre favorecia a criatividade, a empatia e o raciocínio lógico. Acredito que eles sabiam se virar melhor na vida por conta disso tudo”, declara.
Para a psicóloga Emily Verde, é essencial que os pais e educadores orientem e incentivem as crianças e adolescentes a equilibrarem o uso de tecnologia com atividades ao ar livre e interações sociais para um desenvolvimento mais abrangente. “Quando as crianças participam de atividades ao ar livre, interagem com seus pares, desenvolvem habilidades sociais, emocionais e físicas importantes. Essas experiências proporcionam oportunidades para aprender a negociar, resolver conflitos, cooperar e desenvolver habilidades motoras”, explica.
A especialista lembra ainda que o tempo excessivo gasto em dispositivos eletrônicos pode ser prejudicial. “Limitar a participação em atividades físicas e interações sociais face a face. Isso pode levar a problemas de saúde, como obesidade e isolamento social”, alerta.
Análise literária
O professor e arquiteto Marcelo Montiel, escritor do livro “Brasília Adolescente”, que conta histórias sobre a infância e adolescência dos brasilienses nos anos 1960/1980. Para ele, o retorno dessas vivências no período infantil é inviável. “O mundo mudou e está muito diferente. É controverso falar em recuperar essa forma de experienciar a juventude, não sabemos onde que essas mudanças vão dar”, pontua o professor.
Montiel acredita que os jovens têm a capacidade natural de concentrar demais suas energias em determinada atividade, e esquece de procurar diversidade em meio à rotina. “É preciso variar os modos de entretenimento. Manter somente um foco é como passar a vida escutando somente um tipo de música, no fim das contas, é fundamental experimentar conhecer outros gêneros”, sugere.
O arquiteto passou a maior parte de sua infância na Brasília dos anos 1960, e acompanhou o crescimento da capital. As experiências relatadas pelo escritor hoje fazem parte de um imaginário que já não é mais possível encontrar nem pelo Plano Piloto, nem pelas regiões administrativas, como construções de casinhas na árvore. “Havia também uma época do ano em que apareciam muitos bacuraus, e esses pássaros têm a visão afetada durante período diurno, pelo excesso de luz. Durante o dia eles se batiam nas paredes e caiam. A gente recolhia essas aves, cuidava delas e as soltava à noite. Sequer sabíamos da dinâmica da fauna local. Eles migravam da América do Norte para a América do Sul”, detalha.
*Beatriz Mascarenhas, estagiária sob a supervisão de Patrick Selvatti
Por Mila Ferreira do Correio Braziliense
Foto: Arquivo pessoal / Reprodução Correio Braziliense